Avessa aos alertas de especialistas, a comunidade
internacional ignorou a transformação da região do Saara em um território
minado – e isso muito antes da Primavera Árabe
Ao contrário do que algumas vozes oportunistas já começam a
afirmar mundo afora, a Primavera Árabe, a crise no Mali e o consequente ataque
terrorista na Argélia não “abriram as portas” da caixa de pandora do terrorismo
no norte da África. Quem disser isso, caro leitor, está mal-intencionado.
No marasmo de notícias de janeiro de 2013, a opinião pública
internacional está descobrindo um novo foco de preocupações: o Sahel. Essa
região – cujo nome significa “fronteira”, em árabe – marca uma faixa de
território de transição do deserto do Saara, situado ao norte, em direção às
savanas, ao sul. Há pelo menos 10 anos, essa região árida e inóspita abriga
múltiplos campos de treinamento e instalações de grupos islâmicos extremistas e
armados, que se espalham do sul da Argélia ao norte do Mali, da Mauritânia ao
Níger, de trechos do Chade ao interior profundo e desértico da Líbia.
Em primeiro lugar, não, não se trata de um novo Afeganistão,
porque as naturezas desses movimentos são diferentes. Ao contrário dos talibãs,
os jihadistas do Sahel não têm a mesma implicação social com as comunidades
locais. Eles não representam um modo de vida, como os islamistas afegãos, mas
uma ameaça importada.
Depois do início do conflito no Afeganistão e com o aumento
da repressão no Paquistão, grupos derivados da Al-Qaeda se instalaram no Iêmen e
no Sahel. Nessas regiões operam, respectivamente, a Al-Qaeda da Península
Arábica e a Al-Qaeda do Magreb Islâmico. Esse segundo grupo, também conhecido
como AQMI, foi protagonista da invasão do norte do Mali e do sítio industrial
na Argélia.
No Mali, eles atuam também com grupos locais. Dos cerca de 7
mil jihadistas que estão no país neste momento, enfrentando as forças armadas
da França, cerca de 5 mil são tuaregues, segundo os serviços secretos
franceses. Tuaregues têm toda uma história de marginalidade e de nomadismo na
região do Sahel. E esse problema, é verdade, se acentuou após a Primavera Árabe
na Líbia, quando milhares deles lutaram como mercenários ao lado de Muamar
Kadafi.
Os tuaregues que viviam na Líbia, a maioria na região de
Bani Walid, hoje fantasma, foram expulsos da cidade por terem participado do
sangrento cerco à vizinha Misrata. Os inocentes e pacíficos migraram para a
periferia de outros centros urbanos líbios, como Trípoli e Benghazi, onde
enfrentam o preconceito e, não raro, a vingança. Outros milhares, armados e
perigosos, formam os grupos que invadiram do norte do Mali, nas imediações de
Timbuctu.
Também no Sahel, mas mais no interior da Argélia e também da
Tunísia, operam milícias formadas por ex-kadafistas, que fugiram da Líbia após
a derrota na revolução. O mundo faz de conta que elas não existem mais, como se
o kadafismo tivesse acabado. Mas quem conhece a região sabe que militares fiéis
ao antigo regime e mercenários em geral ainda estão lá.
A questão é: é mentirosa a versão de que todo o
desequilíbrio regional é causado pela Primavera Árabe. Observe que os que
defendem essa bandeira são os mesmos que estiveram quietos ao longo dos últimos
18 meses, mas que até meados de 2011 ainda levantavam a voz para defender ou
até elogiar os governos autocratas e sanguinários como o de Ben Ali, na
Tunísia, de Mubarak, no Egito, Kadafi, na Líbia, e Saleh, no Iêmen. Não, a
presença de islamistas na região não é culpa do anseio legítimo de liberdade e democracia manifestado pela maior
parte da população desses países.
Há pelo menos uma década esses grupos jihadistas vêm se
estabelecendo no Sahel, com o conhecimento dos serviços secretos do Ocidente e,
portanto, de seus líderes políticos.
Concentradas demais na guerra no
Afeganistão, impossível de ser vencida, as potências ocidentais fizeram vistas
grossas para o fato de que os mesmos grupos extremistas se reorganizavam no
deserto africano, na época em que Tunísia, Líbia, Egito e Iêmen ainda eram
governados pelos tiranos depostos. Por razões inexplicáveis – e inaceitáveis –,
a Organização das Nações Unidas (ONU) e, a rigor, o Ocidente todo ignorou o
problema da fome, da miséria e do extremismo crescente na região, o que
favoreceu e favorece, por consequência, o recrutamento por brigadas jihadistas.
Sim, a Primavera Árabe é mais um fator de desestabilização.
Mas não, a culpa do enraizamento extremista no Sahel não é da democracia e da
liberdade recentes trazidos pela abertura política. Quem disser isso, meu caro,
ou não sabe o que está falando ou tem más intenções.
FONTE: ESQUERDA NET
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