Documentário sobre entorpecentes e a liberação das Marchas da Maconha mostram a necessidade de se olhar como o assunto foi tratado ao longo dos anos
Legalizar,
descriminalizar, diminuir os riscos e os danos, mudar a política de combate. A
quantidade de ações envolvendo as drogas mostra que o assunto, que nunca saiu
de moda, está ainda mais em pauta que o normal. Se a história de alucinógenos
pode se confundir com a própria trajetória da humanidade, a criminalização de
derivados de certas plantas – como a canábis, a coca e a papoula – é bem mais
recente. Por isso chama a atenção o ex-presidente da República Fernando
Henrique Cardoso, que acaba de completar 80 anos, aparecer no documentário
“Quebrando o tabu”, sobre a mudança do foco ao lidar com as drogas no mesmo
período em que o Supremo Tribunal Federal libera os protestos em prol da
legalização da maconha, as chamadas Marchas da Maconha - cuja proibição havia,
inclusive, gerado um debate em nosso fórum. Coincidência ou uma demonstração de
como as legislações que tratam o assunto estão precisando ser debatidas e
reformadas?
Curiosamente, até o
século XIX, e mesmo em alguns casos mais específicos, o início do século XX,
não havia, em nosso arcabouço jurídico, uma lei que abordasse a questão das
drogas. Por outro lado, algumas substâncias, principalmente os venenos, já
tinham sua venda controlada, antes mesmo da nossa independência.
“Desde as Ordenações Filipinas,
ordenamento jurídico português, com validade no território do Brasil Colônia,
havia um item referido ao uso e à posse de determinadas substâncias”, comenta o
sociólogo Paulo Cesar Pontes Fraga, do programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, e que foi o coordenador de
seminários em que se debateu a violência, as drogas e a sociedade. "O seu
título 89 determinava que nenhuma pessoa poderia ter em casa, exceto os
boticários, substâncias como ópio, rosalgar branco, vermelho ou amarelo ou
solimão", lista as substâncias, lembrando que a pena para quem as possuía
era o degredo na África.
"A 1ª lei da qual se
possui registro histórico [sobre as drogas] é uma postura da Câmara Municipal
do Rio de Janeiro que regulamenta a venda de gêneros e remédios pelos
boticários de 4 de outubro de 1830, que proibia a venda e uso do pito de
pango", complementa o historiador Henrique Soares Carneiro, professor na
cadeira de História Moderna no Departamento de História da USP e também
pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, sobre a
denominação de um cachimbo para se fumar maconha e que, por associação, também
apelidou a própria droga. "Havia multa ao vendedor e três dias de cadeia
aos que usarem, explicitando-se aí escravos e demais pessoas. O critério, por
explicitar escravos, era certamente de controle social", diz, demonstrando
que pode haver na lei, inclusive, um viés discriminatório.
Segundo o sociólogo Paulo
Cesar Pontes Fraga, o Código Penal do Império, de 1851, não tocava na questão
de proibição, mas regulava o uso e a venda de medicamentos, enquanto o
Republicano, de 1890, determinava uma multa a quem vendesse ou ministrasse
substância venenosa sem prescrição nos regulamentos.
"É importante
reparar a não referência a determinadas substâncias como maconha, cocaína ou
ópio. O decreto legislava com a utilização do termo substâncias venenosas e,
atrelado, notadamente, à prática sanitária", ressalta.
Aliás, um paralelo
possível e sempre citado com a história das drogas é a trajetória dos
medicamentos. As drogas legais que alteram a consciência - é interessante
ressaltar – estão sempre entre as mais vendidas, mesmo com todas as exigências
para a sua compra. O ansiolítico Rivotril ficou em segundo lugar na lista de
2010 no Brasil, por exemplo. O professor Henrique Soares Carneiro, em um artigo
intitulado "Drogas, muito além da hipocrisia", citou o que para ele
são as razões para o sucesso dessas vendagens: o atual sistema de patentes, que
prioriza as grandes companhias farmacêuticas, em detrimento do pequeno produtor
que nunca fez segredo de suas descobertas; o monopólio médico da prescrição,
que deixa na mão de uma classe específica o poder de receitar este ou aquele
remédio; e o mercado publicitário voltado tanto para quem toma como para quem
ministra esses medicamentos, criando ou, pelo menos, reforçando novas demandas
e necessidades.
"Sua outra
contrapartida indispensável [para o crescimento dessas vendas de remédios
legais] é a proibição concomitante do uso de diversas plantas psicoativas de
uso tradicional – como a canábis, a papoula e a coca. As funções
psicoterapêuticas que estas têm em medicinas tradicionais passaram a ser
substituídas por pílulas farmacêuticas", argumenta ele, afirmando que “o
maior número de usuários e dependentes de drogas na sociedade contemporânea são
os consumidores de produtos da indústria farmacêutica”.
“A cocaína passou a ser
vendida em farmácias na Europa, no século XIX, como medicamento para o
tratamento de determinadas doenças como a depressão, a fadiga, neurastenia e,
curiosamente, para a dependência de opiáceos”, adiciona o sociólogo Paulo
Cesar, lembrando que a droga também era vista como um energético. “No Brasil,
ela também foi vendida em farmácias para fins terapêuticos. Foi proibida, a partir
de 1919, na Europa”, lembra ele, que ressalta que o cigarro era também
receitado para tratamento de doenças no Brasil.
A partir de 1920, houve
uma “onda mundial de combate ao uso de determinadas drogas”, segundo Paulo
Cesar, agravada no Brasil com a troca, em 1932, da palavra “venenosa” para
“entorpecente”, do artigo 159 do Código Penal.
“A mudança do termo
concebeu uma alteração para além da questão semântica, representou uma nova
postura, um novo olhar dos governos sobre as drogas, implicando em uma moralização
crescente e, consequentemente, legislações cada vez mais rigorosas e a
institucionalização de um aparato burocrático para cuidar da questão e
repressivo para fazer cumprir a lei”, explica ele, dizendo que era um reflexo
da mudança de postura no mundo todo. A partir de então, as legislações foram
sendo modificadas para criminalizarem não somente o comércio dessas drogas, mas
também o cultivo e o consumo.
Estudiosos da droga
mostram a participação do Brasil no processo para jogar na ilegalidade o hábito
de fumar maconha, por exemplo. Após as Guerras do Ópio, no século XIX, houve
diversos encontros entre as nações para se discutir os procedimentos que os
países deveriam tomar para combater certos entorpecentes. Após as reuniões de
1909, 1911, 1912 e 1921 com nenhuma referência à maconha, em 1924, o
representante brasileiro, Pedro Pernambuco Filho, afirmou que os efeitos da canábis
eram piores que os do ópio em nosso país.
“O resultado disso é que
a Liga das Nações condenou a maconha. Depois que a ONU foi criada houve a
primeira Convenção Única de Entorpecentes em 1961, assinada por mais de 200
países colocando a Cannabis numa lista, junto com a heroína, como droga
particularmente perigosa. É algo que não tem razão científica nos dias de
hoje”, diz o médico Elisaldo Carlini, do Centro Brasileiro de Informações sobre
Drogas Psicotrópicas (Cebrid), e membro do comitê de peritos da Organização
Mundial da Saúde (OMS) sobre álcool e drogas em uma entrevista para a
"Revista da Fapesp" de fevereiro de 2010, deixando claro, porém, que
era contra o uso da maconha – ou qualquer outra droga – para recreação.
Já o sociólogo Paulo
Cesar acredita que as pessoas sempre “vão fazer uso de substâncias
psicoativas”, independentemente de serem liberadas ou não. Por isso, ele sugere
que, em vez de proibir, devemos tentar “reduzir riscos”. “Vejamos, o álcool é
uma droga e seu uso abusivo faz mal, mas, hoje, há uma regulação e são raros os
comerciantes que vendem bebidas para crianças e adolescentes, principalmente,
para serem consumidos em seus estabelecimentos. No entanto, qualquer criança ou
adolescente pode comprar droga com um traficante, pois sua venda não é
regulada”, argumentando, porém, que a descriminação do uso pode “acarretar no
acesso de um número maior de pessoas a determinadas drogas” e sugerindo que
haja uma política integrada para diminuir a demanda.
O professor Henrique é
ainda mais revolucionário: além da legalização de todas as drogas, ele sugere o
controle estatal da produção e do comércio.
“O conjunto das drogas
legalizadas acabaria com os efeitos nefastos do chamado ‘narcotráfico’,
encerraria a ‘guerra contra as drogas’, libertaria os prisioneiros dessa
guerra: em torno de metade da população carcerária tanto nos EUA como no
Brasil”, escreve ele, dizendo que se lá essa “guerra” é uma fonte de lucro para
o sistema penal privado, aqui, é um mecanismo de repressão social e racial.
“Reduziriam-se os danos sociais dos usos problemáticos de drogas. Seriam
potencializados os usos positivos, tanto terapêuticos como recreacionais.”
O debate, complexo,
continua: deixe a sua opinião nos comentários. Você é contra ou a favor da descriminalização
da maconha?
FONTE: REVISTA DE HISTÓRIA
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