A primeira representa a história oficial, a libertação dos escravos como se fosse uma simples canetada da Princesa Isabel, sem mais nem menos.
A história oficial do Brasil é cheia dessas coisas. A independência aconteceu com um mero grito, e assim por diante.
Os lutadores preferem, no caso da libertação dos escravos, ter como data símbolo dessa luta antiescravista, o dia do assassinato de Zumbi, 20 de novembro. É justo.
Ignora-se as lutas que
aconteceram para
chegar a uma determinada conquista. O Brasil ficou independente em 7 de setembro
de 1822, e pronto. Felizmente, essas coisas estão sendo revistas. Na Bahia, não é à toa que 2 de julho
aparece com frequência e é comemorado como dia da “Independência da Bahia”. É
que nessa data, em 1823, quase um ano depois da data oficial da independência,
os portugueses que resistiam à independência brasileira naquele estado, foram
definitivamente derrotados.
No Piauí, a derrota dos portugueses foi
concluída em 13 de março de 1823, na Batalha do Jenipapo. O Pará “aderiu” ao Brasil definitivamente em 15 de agosto de 1823.
No Maranhão também, a independência foi conquista nesse ano.
Mas voltando ao 13 de
maio, a data
comemorada durante muito tempo como a da “Libertação dos Escravos” já não é bem
aceita. Para começar foi uma libertação não tão libertária assim. Até nos
Estados Unidos, país que não nos serve de exemplo para muitas coisas, a
libertação dos escravos foi mais correta: cada
escravo libertado ganhava uma mula e um pedaço de terra para tocar a vida.
Aqui, foram simplesmente jogados nas ruas.
Mesmo assim, muitos que lutavam pelo fim da escravidão,
como José do Patrocínio, louvaram a Princesa Isabel por isso.
Este
ano, com o filme Doze anos de escravidão, que conta a história de um negro
livre sequestrado e vendido como escravo no sul dos Estados Unidos, começou-se
a lembrar de um lutador exemplar contra o escravismo no Brasil, Luiz Gama, que até recentemente era
lembrado por poucos. Ele não foi escravo
por doze anos, foram “apenas” oito. Mas sua história é exemplar.
Sua mãe, Luíza Mahin,
era uma negra livre, retinta, bonita, lutadora. Pouco se sabe dela, mas participou
de todas as revoltas negras das primeiras décadas do século XIX na Bahia. De
origem nagô, sabia ler e escrever em árabe, e era quituteira, vendia seus
quitutes por toda Salvador. Assim, servia de elo entre revoltosos. Teve um
envolvimento com um homem de família fidalga portuguesa e daí nasceu Luiz Gama.
Quando ocorreu a Sabinada, revolta liderada pelo médico Francisco Sabino
Vieira, em 1837, proclamando a “República Bahiense”, ela teve papel importante.
Com a derrota, muitos militantes foram presos e mortos. Para não ser pega,
deixou o pequeno Luiz, então com 7 anos de idade, com o pai dele e fugiu para o
Rio de Janeiro.
Vendido pelo pai
Até
os 10 anos de idade, ele foi bem tratado pelo pai, que aí se revelou um pulha: para pagar dívidas contraídas em jogos,
vendeu o filho como escravo, para um negociante paulista. Além de ser um
ato extremamente canalha, era totalmente ilegal: não era permitido escravizar
pessoas nascidas de pais livres, e além disso era proibido levar escravos da
Bahia para outros estados, por causa do espírito revoltoso dos negros baianos.
Temiam que eles “contaminassem” escravos de outros estados.
Pois
bem, primeiro em Campinas, depois em São Paulo, foi escravo até completar 18
anos. Tinha aprendido a ler com um estudante de Direito que foi morar na casa
do seu “senhor” e ensinou os filhos do próprio escravocrata. Aí, reivindicou a
liberdade, mas o “senhor” não concedeu. Conseguiu
a liberdade, não se sabe como, já que em 1891, o então ministro da Fazenda
Rui Barbosa mandou queimar toda a documentação sobre a escravidão no Brasil,
alegando que ela havia sido uma mancha na história do Brasil. E foi mesmo. Mas
o motivo era que ele queria evitar que antigos donos de escravos reivindicassem
indenização com base nesses papéis que valiam como títulos de propriedade. Por
isso, perdemos registros históricos importantes.
Para
não ser perseguido pelo ex-senhor, ele sentou praça na polícia, mas seu
espírito libertário não condizia com a profissão, acabou expulso. Arrumou trabalho como amanuense
(copista de documentos oficiais – na época não havia outra forma de fazer
cópias de documentos), no gabinete do conselheiro Furtado de Mendonça, que
tinha uma vasta biblioteca jurídica. Luiz
Gama leu tudo, passou a entender de leis mais do que quase todos advogados, e
se tornou rábula, quer dizer, advogado não formado, o que na época era
permitido.
E
dedicou todo o seu conhecimento à libertação de escravos, pela via jurídica. Conseguiu desta forma libertar mais de
quinhentas pessoas. E atuava também como jornalista e poeta, tornou-se um
republicano radical, mas descobriu que os republicanos não eram tão
republicanos assim: não aceitavam incluir em suas propostas o fim do
escravismo.
Era
sempre ameaçado de morte, mas não vacilava. Ia para certos locais defender
escravos sabendo que podia ser morto, mas ia. Num júri no interior paulista, defendendo um escravo que matou o
senhor que o maltratava, disse a
sentença que provocou um grande rebuliço: “O escravo que mata o senhor, seja em
que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”.
Radicalizando a luta
Já perto do fim da
vida, começou a
reconhecer que sua luta libertando escravos individualmente, enquanto o fim da
escravatura não vinha, precisava ser radicalizada. Com uma diabetes que se
agravava e limitava seus movimentos, em 1879 passou a achar que seriam necessárias insurreições como as
lideradas por Antônio Bento, outro injustiçado, esquecido pela história
oficial.
Antônio Bento de Souza
e Castro era um negro de família rica, filho de um farmacêutico português.
Estudou direito, tornou-se juiz em Atibaia e abandonou tudo para se dedicar à
luta pela libertação de escravos.
Defendia métodos mais radicais do que os de Luiz Gama e passou a ser chamado de
“O fantasma da abolição”. Então, já
doente, Luiz Gama fundou o Centro
Abolicionista, com a participação ativa de Antônio Bento, e em 1882 lançou o jornal Ça Ira!, que tinha
forte participação do escritor Raul Pompeia, autor de um artigo que defendia
claramente o direito do escravo matar seu “senhor”.
Depois
veio o Partido Abolicionista e o movimento Caifazes, liderado por
Antônio Bento. Seus militantes iam a
fazendas e estimulavam os escravos a fugirem, com apoio deles. Em alguns
casos, raptavam escravos que tinham medo de fugir e, com apoio de ferroviários
simpatizantes da causa, os levavam (assim como os que fugiam espontaneamente)
para o quilombo do Jabaquara, em Santos, arrumavam documentação falsa para eles
e os mandavam para outras regiões, como negros livres.
O
nome do movimento teve inspiração bíblica. Caifás,
no Evangelho segundo São João, teria dito: “Vós não sabeis, não compreendeis
que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo não pereça?”, antes de
entregar Jesus a Pilatos.
Luiz Gama morreu em
agosto de 1882, sem ver o fim do escravismo. Seu enterro foi histórico, o maior ato público visto
na capital paulista até aquela época, com participação de negros libertos,
escravos, intelectuais, escritores, artistas, o povo todo. Até seus inimigos.
Foi-se o “precursor do
abolicionismo”, ficou o “fantasma da abolição”, Antônio
Bento, que continuou sua luta até ser assassinado. Ah, se eu fosse historiador…
Não vi nada até hoje, a não ser referências vagas, sobre Antônio Bento e os
Caifazes. Está aí uma sugestão.
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