Nos anos 1980, cientistas acreditaram ter encontrado o
responsável pela entrada da aids na América. Pesquisas genéticas mostraram que
a invasão silenciosa tinha começado muito antes
Em
1984, em um estudo publicado no American Journal of Medicine, profissionais do
Centro de Controle de Doenças (CDC), em Atlanta, agruparam os casos conhecidos
de aids, mal que havia três anos assombrava o mundo, e apontaram o que a
ciência chamou de Paciente Zero – aquele que, de acordo com uma investigação
epidemiológica, estaria ligado à origem da doença nos Estados Unidos. O
mapeamento havia começado em 1982. A partir de entrevistas com os primeiros a
apresentarem quadros de infecções oportunistas, os pesquisadores encontraram um
personagem em comum: boa parte dos enfermos, na maioria homossexuais, relatava
ter mantido contato sexual com um comissário de bordo franco-canadense. Os
encontros tinham acontecido em Los Angeles, São Francisco, Nova York e outras
nove cidades do país. Fazia muito pouco tempo que os cientistas haviam chegado
a um consenso sobre o nome da doença e, quando isso aconteceu, ela já tinha
recebido a pecha de peste gay.
Três
anos depois do rastreamento feito pelo CDC, o jornalista norte-americano Randy
Shilts lançou o livro And The Band Played On com uma revelação: o tal paciente
zero se chamava Gaëtan Dugas e morrera em 1984. Shilts descreveu o homem como
um atraente funcionário da Air Canada, que, viajando país afora, teria
propagado o HIV em boates e saunas gays. Dugas tinha sido diagnosticado com
sarcoma de Kaposi em 1980, antes portanto dos primeiros estudos sobre a aids
que viriam relacioná-la a esse tipo de câncer. Trabalhando na cobertura da nova
síndrome desde o começo, Shilts tinha se aproximado de cientistas e pacientes,
e sua narrativa rica em detalhes acabou virando também um filme, em 1993, com o
ator Jeffrey Nordling no papel de Dugas.
Se
o desconhecimento ajudou a espalhar preconceitos e equívocos, os esforços para
conhecer e conter a aids levaram a descobertas sobre o sistema imunológico e
virologia. “Não se reconhece mais esse Paciente Zero”, diz Stefan Cunha Ujvari,
infectologista e autor de A História da Humanidade Contada pelos Vírus. “Hoje
os estudos genéticos mostram a disseminação de maneira mais clara.” Nas
pesquisas, explica o médico, usam-se questionários para avaliar grupos de
pacientes e tentar descobrir pontos em comum entre quem adquiriu a doença e
também entre aqueles que escaparam dela. No caso das infecções que despontavam
nos EUA, entrevistaram aqueles que apresentavam os sintomas, cruzaram as
informações e chegaram a Dugas. Mas segundo um trabalho de 2007 do biólogo Michael
Worobey, da Universidade do Arizona, estima-se que o vírus já estava circulando
no país 12 anos antes de a aids ser reconhecida, em 1981.
Do
SIV ao HIV
Stefen
Ujvari, que atua no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, conta que a
partir de 1990 os cientistas se debruçaram sobre o material genético do HIV,
comparando suas semelhanças com o SIV, vírus encontrado em chimpanzés e outros
primatas. “Assim se chegou ao triângulo africano formado por Congo, Gabão e
Camarões”, afirma. Foi nesses territórios que o SIV passou ao organismo humano.
Nas primeiras décadas do século 20, com a região dominada por conflitos,
escassez de alimentos e pobreza, caçadores se embrenhavam nas matas perseguindo
e matando esses animais. Na ação, eram mordidos, arranhados, cobriam- se com o
sangue dos bichos ao destrinchá-los – e dessa forma foram contaminados, sem
contudo apresentar nenhum problema de saúde. Acontece que o vírus é mutante e
foi se transformando até chegar ao HIV, este, sim, capaz de provocar estragos
nas defesas e levar a infecções fatais.
A
pergunta persistia: quando surgiu a primeira pessoa infectada? Hoje se sabe que
a aids estava presente na população africana desde o começo do século 20, mas
ninguém relacionava, por exemplo, as mortes por diarreia e pneumonias a ela.
Para chegar a essa data, estudiosos lançaram mão de uma espécie de marcador do
ritmo das mudanças nos agentes infecciosos. “Usam-se amostras de vírus do mundo
inteiro, de várias épocas. Com as análises monta-se um cálculo que chamamos de
relógio molecular”, diz Cunha. De forma simplificada: os pesquisadores comparam
os microorganismos e anotam as diferenças que vão aparecendo em seus códigos
genéticos com o tempo. Digamos que a cada dez anos surgem duas alterações. Um
cálculo retroativo pode inferir quando o ancestral da cepa pandêmica do HIV se
originou.
Para
calibrar o relógio molecular no caso do HIV, os pesquisadores usaram duas
amostras sanguíneas obtidas no Congo, uma em 1959 e outra em 1960,
confrontando-as com as de pacientes diagnosticados com aids décadas depois. A
primeira veio de material colhido por dois cientistas que realizavam estudos
genéticos das diferentes etnias africanas. Na ocasião não sabiam, claro, que
havia um vírus circulando no país. Mas o fato é que aquele fragmento foi
guardado e, quando a aids deu as caras, o sangue foi usado e descobriu-se a
presença do HIV. A segunda peça a colaborar na engrenagem veio de uma biópsia
feita em um nódulo linfático de uma mulher em Kinshasa, capital do Congo – na
época, a cidade tinha o nome de Leopoldville –, também congelada nos
laboratórios americanos.
Na
América
Acredita-se
que o HIV começou a se difundir pela África com a urbanização, o crescimento
das cidades, que aumentou o contato entre as pessoas e fez surgir zonas de
prostituição. “Em 1960 houve muitas migrações de tropas de um país a outro em
razão das lutas pela independência e das guerras civis no continente”, diz
Stefan Ujvari. Com os soldados mudando de lá para cá, o HIV passou a circular
largamente.
As
comparações de material genético revelam que, na América, o vírus chegou
primeiro ao Haiti, em 1960, e alcançou os EUA em 1969. Por quê? “Quando o Congo
se tornou independente, o país entrou numa guerra civil. O Haiti enviou tropas
para as forças de paz e professores para reconstituir o ensino naquele país”,
afirma o infectologista. Muitos voltaram para casa contaminados, e a
enfermidade foi abrindo caminho, chegando aos EUA por meio de haitianos que
procuravam ali refúgio da feroz ditadura de François “Papa Doc” Duvalier. Na
mesma época, caiu o governo de Fulgêncio Batista em Cuba, e a ilha deixou de
ser o playground dos norte-americanos. A rota do turismo sexual migrou para o
Haiti.
Somente
quando a aids surgiu entre mulheres, crianças e pessoas que necessitavam
receber transfusão de sangue começou a arrefecer o estigma que levantava
bandeiras moralistas em vez de se preocupar com proteção de verdade. Ficou
claro, finalmente, que a doença viajava – e ainda viaja – pelo globo bem antes
de ter levado à morte personagens como Gaëtan Dugas. E, apesar dos avanços
obtidos em trabalhos de décadas nos laboratórios, o sexo seguro, com o uso de
camisinha, continua valendo como recomendação para todos. Assim como os testes
para detectar o HIV em doadores de sangue e o não compartilhamento de seringas.
SAIBA
MAIS
Livros
A
História da Humanidade Contada pelos Vírus, Stefan Cunha Ujvari, Editora
Contexto, 2008
And the Band
Played On (em inglês), Randy Shilts, St. Martis Press, 1987
FONTE: Aventuras na História
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