Mais
uma pista a indicar o andar da carruagem. Parcela da população brasileira é
arrastada para cima e para baixo da pirâmide social pelas ondas de marés
enchentes e marés vazantes. A primeira carrega as pessoas da classe C, a
chamada nova classe média, para um passeio pelos territórios do grupo B, às
vezes com direito a uma escapulida (rápida) ao topo, onde habita a categoria A.
Quem propicia a subida é grana extra.
A
segunda maré, a baixa, empurra o contingente para as águas do fundo. Isso se dá
quando a renda das famílias fica apenas no parco rendimento de aposentadoria,
pensão ou bolsas, sem os ganhos com bicos e atividades paralelas. No sufoco do
bolso apertado, quem foi induzido a consumir e se ver sem condição de ressarcir
despesas, passa a usar de maneira indiscriminada cartões de crédito e a
resvalar pela inadimplência.
Tal
radiografia, flagrada por pesquisa encomendada pelo Consultative Group to
Assist the Poor (CGAP), organismo ligado ao Banco Mundial, e exposta no jornal
(OESP, 18/05/2014), pode explicar fenômenos que estão a ocorrer no país, a
partir de manifestações de movimentos organizados e categorias profissionais.
Ponderável
parcela da classe média que muda de condição, muitas vezes de um mês para
outro, acaba ingressando no perigoso meio fio da instabilidade, tornando-se,
ela própria, um dos eixos a mover a engrenagem da insatisfação social.
A
expressão desolada de um microempreendedor sobre seus ganhos mensais arremata a
situação que abriga milhões de brasileiros: “ganho algo entre nada e R$ 5 mil;
não dá para adivinhar quando e quanto vai entrar”.
A
insegurança que grassa por classes, espaços, setores e profissões tem se
avolumado nos últimos meses, apesar de constatarmos que a taxa de desemprego se
mantém estável (em torno de 5%, em março último, nas cinco maiores regiões
metropolitanas).
A
questão é a baixa qualidade do emprego, que leva muitos a buscar outros meios
de sobrevivência. Ademais, o cobertor social tem sido curto para cobrir novas
demandas. A precária estrutura de serviços não tem recebido do Estado
alavancagem para oferecer bom atendimento ao povo.
Portanto,
por conta do estranho fenômeno que aqui se forma - uma classe C mutante que
tateia na escuridão entre as portas do céu e do inferno, passando pelo limbo -
as pessoas decidiram abrir a locução sob propícia temperatura ambiental.
As
políticas sociais do governo, é oportuno lembrar, abriram buracos. A decisão de
implantar gigantesco programa de distribuição de renda – elogiável, porquanto
se vive, hoje, o menor nível de desigualdade de nossa história – não tem sido
acompanhada de uma política educacional estruturante, capaz de elevar o grau
civilizatório de milhões de pessoas que ascenderam na vida.
Basta
avaliar a estratégia de indução ao consumo, adotada pelo governo brasileiro
para enfrentar a crise por que passaram as economias mundiais, a partir de
2008. Ouçam-se especialistas, dentre eles, Celso Amâncio, ex-diretor das Casas
Bahia (OESP, 18/05/2014): “o governo incentivou o consumo, mas crédito é uma
coisa e poder de compra é outro.” Quer dizer, o banco até oferece crédito, mas
os novos consumidores não dispõem de educação financeira. Acabam usando e
abusando de cartões de crédito, um pagando o outro.
O
governo forjou, de um lado, o populismo econômico para abrir as portas do
consumo aos grupos emergentes, mas, por outro, deixou de oferecer a eles
ferramentas (e valores) que balizam comportamentos da classe média tradicional.
A cesta de compra dos emergentes inchou: TV por assinatura, internet, plano de
saúde, escola privada para os filhos, moto ou carro novo. A ignorância em
matéria financeira acabou estourando o bolso de tantos quantos achavam ter
encontrado o Eldorado.
Sob
essa engenharia, pode-se compreender o movimento das “placas tectônicas” que
geram sismos nas camadas do centro da pirâmide. Como se recorda, o losango tem
sido apresentado como o formato do novo Brasil: de topo mais espaçado,
alargamento do meio e estreitamento da base.
Ocorre
que o saracoteio da classe C – que ora dança na pista do meio, ora na de baixo
-, não permite apostar na substituição definitiva da pirâmide pelo losango. O
que se vê na configuração é um redemoinho nas camadas centrais, a denotar
insatisfação e impactos que afetam a vida de milhões de brasileiros,
principalmente os habitantes de grandes cidades, cujas rotinas sofrem com
congestionamentos, mobilizações, greves e paralisações de frentes de serviços
públicos.
É
verdade que parte considerável da tensão urbana se deve ao momento especial do
país: vésperas de Copa de Mundo e de campanha eleitoral. A estratégia de
sensibilização do poder e de atores políticos ganha fôlego.
Mas
é inegável que há uma força centrípeta em ação, aqui mais forte e organizada,
ali mais tênue e dispersa, dando a impressão de que o gigante “deitado
eternamente em berço esplêndido” faz parte da retórica do passado. A
dissonância se forma em nossas mentes quando somos levados a cantar (sem
interpretar os versos) nosso belo hino nacional.
Remanesce
a questão: e para onde as altas e baixas marés carregarão a classe C (que soma
64 milhões de pessoas) e, ainda, que consequências serão sentidas em outros
conjuntos?
A
hipótese mais provável é a que, a continuar o vaivém dos grupos emergentes, os
sismos continuarão a balançar o losango e este voltará a dar lugar à velha
pirâmide. As conquistas obtidas com os avanços dos programas de distribuição de
renda estariam comprometidas. Reflexos (pressões, contrapressões, conflitos,
demandas) aparecerão na malha de toda a classe média (cerca de 100 milhões de
brasileiros). As marolas geradas por impactos no meio da lagoa acabarão
chegando às margens.
Em
suma, enquanto as famílias de classe média se mantiverem “enforcadas”, o nó
apertará o gogó de outros habitantes da pirâmide. O Brasil terá de voltar a
crescer, de maneira forte e sadia, sem usar o esparadrapo de paliativos
sociais.
FONTE: O GLOBO / Blog do Noblat - Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato
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