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segunda-feira, maio 12, 2014

30 anos de terra arasada no território de Carajás




Seminário internacional reúne lideranças indígenas e representantes de movimentos sociais para discutir impactos sociais e ambientais em Carajás (PA)

O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
(Carlos Drummond de Andrade)
Em uma sala de aula muito simples, despojada de quase tudo menos da professora e seus poucos alunos, a rotina do ensino é repentinamente interrompido por um rugido crescente entrecortado por uivos ensurdecedores. A fala da professora se perde no caos sonoro e cala, enquanto os meninos levantam os olhos e esperam, respiração suspensa. A câmara se afasta da cena porta afora, gira e foca um trem da mineradora Vale, que rasga a comunidade rural no interior do Maranhão em grande velocidade. Passam vagões por intermináveis minutos, tudo treme. Depois, aos poucos, o silêncio volta e os meninos suspiram, aliviados. Mas não houve sobressaltos, o trem da Vale é rotina.
A cena é parte do documentário “A peleja do povo contra o dragão de ferro”, do cineasta maranhense Murilo Santos, lançado na última segunda, 5, na abertura do seminário internacional Carajás 30 Anos. Por uma semana o evento reuniu atingidos por projetos de mineração, intelectuais e organizações e movimentos sociais na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São Luis, para destrinchar o legado de 30 anos de funcionamento do Projeto Grande Carajás.
“O que aconteceu no Maranhão, território da Vale, nos últimos 30 anos?”, questiona o padre Dario Bossi, coordenador da rede Justiça nos Trilhos, uma das organizadoras do evento. “Em resumo, superexploração, colonialismo e ditadura. Uma superexploração dos recursos naturais, mas também do trabalho, do tempo, das oportunidades, que levou a um estado de miséria profunda principalmente nos locais onde estão instalados os projetos minerários. Colonialismo porque se repete o velho e eterno sistema de saque de riquezas para exportação. E ditadura nas práticas repressivas das empresas e do governo contra os impactados, resistentes e críticos, através de criminalização, repressão, espionagem”, reflete Bossi.
Impactos da Vale
O filme de Santos sintetiza, em pouco mais de uma hora, boa parte dos impactos da atividade mineira da Vale, da estrada de ferro Carajás e das guseiras que orbitam no entorno da maior mina de ferro do mundo, retratando uma seqüência de agressões a indígenas, quilombolas e dezenas de comunidades rurais nos estados do Maranhão e do Pará. Um tipo de “4ª guerra mundial”, de acordo com o jornalista uruguaio Raul Zibechi.

Convidado a analisar o setor da mineração à luz do direito internacional e dos Estados nacionais, Zibechi avalia que a sanha da apropriação dos bens comuns pelo capital, em especial a mineração na América Latina, desencadeou uma guerra contra as populações tradicionais, criando zonas ou estados de exceção, onde direitos deixam de ter qualquer validade.
“A mineração pode ser considerada a síntese de um novo colonialismo na nossa região. No Peru, 50% do território nacional está concessionado para o setor, num sistema muito semelhante às concessões das antigas colônias. No Chile, a mineração consome 37% de toda a energia produzida no país. Na fronteira do Chile com a Argentina, onde se pretende construir uma mina de ouro nos glaciais entre os dois países (projeto Pascua-Lama), se fala em “facilitação fronteiriça”, mudanças nas leis de fronteira, que passaria assim a pertencer a uma empresa multinacional  (a canadense Barrik Gold). Legislações são modificadas em favor das mineradoras, e sobram Estados falidos do ponto de vista da defesa dos povos. Não existe democracia real nos espaços de mineração”, afirma Zibechi.
Direitos indígenas
Welton John, indígena Aikewara da Terra Indígena (TI) Sororó, localizada a 100 km de Marabá, sul do Pará, comunga da análise do jornalista uruguaio a partir da história recente de seu povo. “Temos sido vítimas de ataques do Estado desde a década de 1970, com a construção de grandes estradas (Transamazônica e Belém-Brasilia)”, inicia Welton.

Hoje, o problema maior é o transito dos caminhões da Vale pela BR-153, que corta a TI, e as atividades da americana Dow Corning, cuja usina de silício metálico está localizada às margens da área indígena. Do meio da TI se escutam e se sentem as explosões das atividades da empresa, que também se tornou ponto de partida da invasão de madeireiros no território Aikewara.
Além dos Aikewara, áreas dos indígenas Asurin, Parakanã, Guajajara, Atikum, Xicrin, Awá-Guajá, Kaapor, Gavião Parkatêjê, Kyikatêjê e Akrãtikatêjê e índios isolados do Pará e do Maranhão sofrem os impactos das atividades de mineração na macro-região de atuação da Vale, palco de intermináveis ações por reparação de danos.
Em uma sala da UFMA, representantes de quase todas as etnias atingidas ouvem as palavras de Welton: “Há tempos atrás, uma liderança indígena, Paulinho Paiakan, disse que os índios tinham que mudar de armas e lutar com papel e caneta. O que ganhamos com isso? Está na hora de deixarmos a caneta e retomarmos arco e flecha e borduna. Porque vejam, no Rio de Janeiro pararam a cidade por causa do transporte. Primeiro, a polícia veio e botou todo mundo pra correr. Mas depois veio mais gente, mais gente, e ganharam. Porque não podemos fazer a mesma coisa? Juntar índio, ribeirinho e quilombola, e fazer luta de verdade? Onde tem o que é inestimável para nós, a Vale quer implantar suas minas. Pra nós, não tem dinheiro que vale”.
De um mundo muito distinto dos Aikewara, a alemã Susanne Schultz, doutora em ciências políticas pela Universidade de Berlim, trabalha com projetos no Brasil desde 1987. A convite da Fundação Rosa Luxemburgo, Susanne recebeu a missão de analisar as relações Brasil-Alemanha no mercado internacional de ferro, uma vez que 50% desta matéria prima importada por seu país vem das minas brasileiras.
“Precisamos fortalecer a noção de danos da cadeia produtiva do ferro, uma vez que o mercado consumidor teria potencial força de influenciar o modelo produtivo. Mas na Alemanha a política governamental chamada “Estratégia de Matérias Primas” (Rohstoffstrategie) tem funcionado como um mecanismo que, em relação ao Brasil, garante o acesso às matérias primas sem aplicação de critérios sociais e ambientais.
Há um grupo de cerca de 40 ONGs, reunidas no chamado Grupo de Trabalho sobre Matérias Primas (AK Rohstoff) que tem tentado substituir critérios voluntários de empresas em critérios mandatários, porque os voluntários obviamente não funcionam. Mas não é fácil desconstruir o discurso de ‘é só um trem, não é grande coisa’, quando falamos da estrada de ferro Carajás, por exemplo. É preciso dar mais visibilidade aos impactos sobre as terras indígenas, quilombolas, das comunidades rurais, e sobre o meio ambiente”, avalia a cientista política.
Acima de tudo, porém, Susanne pensa que os partidos de esquerda em seu país têm o dever de se aprofundar no debate sobre o extrativismo (aqui conceituando a extração de matérias primas), levando em conta a profunda corrupção que caracteriza o modelo desenvolvimentista e de poder que dá sustentação às atividades minerárias. “Seria importante que os partidos Verde e Die Linke (A Esquerda) se envolvessem mais no tema, e que deslocassem para o primeiro plano a compreensão dos modelos de vida que não os do mercado, como o indígena. É disso que depende o futuro que queremos”.
Independente do que se desenrola em gabinetes, porém, a impaciência dos povos da área de influência de atuação da Vale parece estar chegando próximo a seus limites. A intolerância com abusos deu o tom de todas as falas no seminário Carajás 30 Anos, marcou uma manifestação em frente à sede da empresa, e explodiu na marcha que tomou as ruas de São Luis, derrubou grades da polícia e estacionou em frente ao palácio da governadora Roseane Sarney na última quinta, dia 8.
Com base na experiência de anos estudando os movimentos sociais da América Latina, Raul Zibechi sintetiza: “Quando a dignidade não é reconhecida, há que se romper. Há que se criar condições para inviabilizar o roubo. Não pelas vias da negociação, mas pela expulsão. Construir esta nova cultura, este é o desafio”.
FONTE: BRASIL DE FATO / Verena Glass - Repórter Brasil

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