Não fosse ela, a medicina teria evoluído mais lentamente, as caravelas demorariam mais para chegar às Américas e diversos tecidos jamais teriam sido criados. A cannabis, hoje demonizada em boa parte do mundo por seu uso como entorpecente, tem propriedades quase esquecidas nos últimos cem anos. E foram elas, potencializadas há séculos pelo homem, que fizeram da planta a mais recente a ter o genoma mapeado.
A pesquisa é assinada pelo bioquímico Jon Page e o biólogo Tim Hughes, respectivamente das universidades de Saskatchewan e Toronto, no Canadá. Em seu artigo à revista "Genome Biology", ambos qualificam a cannabis como uma "planta útil", que serve para alimentação, material de construção e remédio - embora todas esses serviços esbarrem em sua má reputação.
Segundo a dupla, a cannabis é usada medicinalmente há mais de 2.700 anos na Ásia Central - seu provável berço. Page e Hughes sequenciaram o DNA de uma potente linhagem de maconha para compará-lo a uma variedade do linho-cânhamo, uma planta da família das canabináceas.
A análise do genoma e do transcriptoma (genes que são ativados) dessas duas substâncias poderia explicar por que a maconha produz o tetrahidrocanabinol (THC), o composto psicoativo da cannabis ausente no cânhamo.
- Estudando os genomas, vê-se que a domesticação e o cultivo das sementes de maconha causaram a perda de uma enzima que, para ser produzida, "concorreria" no organismo com a produção de THC - explica Page.
Em outras palavras: entre enzimas que produziriam fibras e uma substância psicoativa, os agricultores fizeram a segunda opção.
Não que o homem tenha controlado todo este processo. Segundo Page, é provável que a cannabis tenha evoluido para produzir THC muito antes de ser descoberta. Mas a concentração dos níveis da substância, estes sim, foram patrocinados por nós.
- Imagino que os homens salvaram sementes de plantas que produziam alta quantidade de THC, quando perceberam o seu processo medicinal e de intoxicação - arrisca o bioquímico. - Com o tempo, isso levou a sementes com grande quantidade dessa substância. Claro que a distribuição global da maconha, nas últimas décadas, acirrou esta seleção.
Também foi neste período que a cannabis passou de mocinha a vilã. Segundo Page, há diversas propriedades da planta que poderiam voltar a ser exploradas.
- A cannabis provavelmente jamais será importante como o milho, o arroz ou outra planta que nos serve de alimento - reconhece. - Mas, como uma fonte de bioprodutos, creio que será muito valorosa. O estigma contra a planta começou no início do século passado, quando as sociedades tornaram-se mais preocupadas com os efeitos negativos de algumas drogas, incluindo a maconha. Antes disso, o cânhamo era cultivado em muitos países do mundo, principalmente como uma fonte de fibras.
O uso medicinal da cannabis já foi identificado em textos de milhares de anos atrás de China, Grécia e Pérsia. A planta era receitada para um leque de sintomas, de insônia a problemas gastrointestinais - mas, sobretudo, como analgésico. A planta permaneceu como principal modo conhecido para aliviar a dor até a invenção da aspirina. Tanto assim que, em 1937, quando os Estados Unidos aprovaram uma lei para banir o uso da maconha, os protestos mais enfáticos vieram da Associação Médica Americana.
Nas décadas seguintes, a maconha continuou, embora timidamente, marcando presença em uma série de tratamentos. Foi sugerida para combater a perda de apetite entre pacientes com Aids e até prescrita para o combate ao alcoolismo. Mas as pesquisas não aterrissaram no Brasil - aqui o seu uso é proibido para qualquer finalidade.
De acordo com Hughes, que também participou da pesquisa canadense, a cannabis chegou a ser eleita por estudiosos de plantas como uma das mais bem sucedidas intervenções genéticas em vegetais na História.
- Mas não há qualquer registro sobre isso, visto que é quase impossível estudá-la, devido às proibições - queixa-se. - Além desse, havia outro motivo para abordar a cannabis: um amigo meu, biotecnólogo, me disse que a canabinoide representa um dos mais simples e eficazes produtos naturais não explorados que poderia ser usado para artigos farmacêuticos.
FONTE: GLOBO.COM
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