A ancestral polêmica sobre os limites do humor voltou às páginas impressas e eletrônicas da mídia nos últimos dias, revitalizada por uma piada ofensiva do humorista Rafinha Bastos. No programa CQC, da Band (19/9), o comediante respondeu a um comentário do apresentador Marcelo Tas (“Que bonitinha que está a Wanessa Camargo grávida”) com a sutileza que lhe é peculiar: “Eu comeria ela e o bebê”, afirmou Bastos. Marco Luque, o terceiro integrante da bancada do CQC, apenas sorriu.
O tema liberdade de expressão vs. responsabilidade de expressão recrudesceu, opondo alguns (ainda poucos, ao menos publicamente) comediantes e outros muitos críticos do gracejo que se confunde com ofensa. Apesar de fundamental, não é essa a questão que nos interessa agora. A intenção deste breve artigo é menos audaciosa e sua natureza presta tributo aos estudiosos da comicidade e do riso, e não aos teóricos da liberdade de expressão.
Em outras palavras, quer-se dizer por que Rafinha Bastos, em seus arroubos ofensivos, não tem graça.
Em entrevista à edição de Veja São Paulo (5/10), o humorista Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta, reforça: “Quando você ofende alguém, é porque não houve graça, falhou.” O empresário José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, concorda: “Quando uma piada é feita com apelação e ofende a audiência, é porque ela é ruim.” O escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva completa, na mesma reportagem: “Grosseria não é um elemento de humor, é uma questão equivocada de ignorância histórica, de não saber os limites do que é engraçado.”
“O riso reprime excentricidades”
Mas, afinal, o que é engraçado? O riso, segundo teorizou um de seus principais estudiosos, o filósofo francês Henri-Louis Bergson (que em 1900 publicou o seminal Le Rire – essai sur la signification du comique), é essencialmente um fenômeno social, uma espécie de castigo que a sociedade aplica aos que ameaçam deixá-la ou aos que violam seus códigos mais elementares de conduta. Espera-se, por exemplo, que um adulto humano caminhe sobre duas pernas. Logo, um indivíduo engatinhando em local público será evidentemente vítima de uma correção, que no caso se manifesta pelo riso. Se o mesmo indivíduo não anda sobre duas pernas porque está impossibilitado por doença ou outro motivo de força maior (não possui uma das pernas, ou está amarrado, a título de ilustração), o castigo do riso se torna desnecessário porque ele não mais viola normas sociais. Por isso, a piada sobre o cadeirante que não caminha não faz sentido, não é engraçada. Apenas, como cita Rubens Paiva, uma grosseria, uma ignorância histórica.
Bergson prossegue sua análise ao discutir outras situações que provocam o riso, como aquela em que a rigidez de alguém, manifesta em contraposição à flexibilidade exigida pela sociedade, torna o sujeito ridículo. “Toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo será então suspeita para a sociedade, por ser o possível sinal de uma atividade adormecida e também de uma atividade que se isola, que tende a afastar-se do centro comum em torno do qual a sociedade gravita, de uma excentricidade, enfim. E no entanto, a sociedade não pode intervir nisso por meio de uma repressão material, pois ela não está sendo materialmente afetada. (...) Será, portanto, com um simples gesto que ela responderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie de gesto social. Pelo medo que inspira, o riso reprime excentricidades”, escreve o filósofo.
“O humor está no fundo do poço”
É por isso que o palhaço que insiste em cometer determinado erro, ou em manter um comportamento rígido, é engraçado. O palhaço que teima em dizer não a tudo, ou aquele que continua tentando subir um poste untado com óleo, torna-se potencialmente ameaçador, potencialmente um pária social: deve ser castigado, pelo riso, por sua suposta burrice. O mesmo ocorre nas situações de inversão de papéis: a vítima pelo criminoso, o esperto pelo burro, o rico pelo pobre – situações exaustivamente exploradas no humor de comediantes de stand-up, como Rafinha, que já tentou extrair riso da situação de mulheres estupradas (vítimas) transformando-as em “beneficiadas” pelo crime, como no chiste “toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra burro”, dito em uma de suas apresentações-solo.
Nesse sentido, estão certos os que dizem que não existe humor a favor. Ele é sempre punitivo, sempre, e portanto, crítico. Ou, voltando a Bergson: “O riso é, acima de tudo, uma correção. Feito para humilhar, deve dar impressão penosa à pessoa que lhe serve de alvo. A sociedade vinga-se por meio dele das liberdades tomadas com ela.”
Jacques Le Goff, em O Riso na Idade Média, enfatiza que o riso é um fenômeno cultural, aspecto pouco trabalhado na obra de Bergson. “De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação ao riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele exige pelo menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias: uma que provoca o riso, uma que ri e outra de quem se ri, e também, muitas vezes, da pessoa ou das pessoas com quem se ri. É uma prática social com seus próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco”, escreve. Nesse sentido, a crítica de Boni à revista Veja São Paulo, quando diz que “o humor nacional está no fundo do poço, falta finesse”, necessariamente reflete também o estado da sociedade brasileira em que está inserido o tal humor considerado de baixa qualidade.
O humor equivocado
Como completa Vladimir Propp, autor de Comicidade e Riso, “para rir é preciso saber ver o risível; em outros casos é preciso atribuir às ações algum valor moral, a comicidade da avareza, da covardia etc.”
Outra percepção do riso vem do pai da psicanálise, Sigmund Freud, para quem o riso é ato libertador. Segundo o autor, o cômico é um ataque a uma repressão física ou mental ao indivíduo ridente. A abordagem psicológica do humor também enxerga sua manifestação como forma de exprimir o socialmente inexprimível (tabus como os que envolvem sexualidade e violência, por exemplo) e é nesse terreno que os humoristas da nova geração parecem sustentar suas piadas, às vezes insustentáveis.
Isto posto, o que dizer das piadas de mau gosto de Rafinha Bastos? Liberdade de expressão à parte, elas simplesmente não funcionam. Não provocam nem a correção ao indivíduo que se desvia da sociedade nem a libertação de que Freud falava. Não há sentido, então, na perspectiva de uma filosofia do riso, em esperar reação simpática do público a comentários como “comeria o bebê de Wanessa Camargo” ou “mulher feia tem de comemorar estupro”, em livre interpretação, entre outras tantas. Não há por que, consequentemente, levantar a nobre bandeira da liberdade de expressão nesses casos. O humor foi simplesmente equivocado, e o trabalho do humorista, mal feito. Filosofias à parte, as piadas não têm graça.
FONTE: observatoriodaimprensa / Renato Essenfelder editor e professor de Jornalismo das Universidades Mackenzie e ESPM, em São Paulo, e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA/USP
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