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quarta-feira, outubro 19, 2011

Mestres da Roda











Uma história de velhos mestres que, quase no anonimato, preservam a versão original da capoeira na Bahia

Um grito gutural abre a roda e impõe silêncio no salão. Quem comanda o ritual é Edvaldo Borges da Cruz, ou mestre Lua de Bobó, senhor negro de barbas brancas e olhar tranqüilo e cativante. Ele entoa a ladainha, um cântico em forma de lamento, sob o ritmo da orquestra constituída de berimbaus, atabaque, pandeiros, reco-reco e agogô.

Espero o fim dessa saudação aos deuses e mestres para começar a jogar. A música não acaba; o tom lamentoso, porém, dá lugar a um ritmo mais cadenciado. Versos curtos são respondidos em coro pelos que fazem parte do círculo – metáfora do mundo que nos move.

Tirei a sorte grande: por estar posicionado como a primeira pessoa de um dos lados da orquestra, fui chamado para “abrir” a roda de capoeira. Uma imensa responsabilidade. É 29 de janeiro, e Lua de Bobó, renomado capoeirista da Bahia, comemora seus 56 anos de vida. Os velhos mestres estão reunidos na sede do grupo Menino de Arembepe, uma homenagem do anfitrião à vila litorânea onde nasceu, ao norte de Salvador, e para onde decidiu voltar a morar em 2001. Entre os muitos que vieram prestigiar a festa consigo distinguir os notáveis Moraes, Curió, Pelé da Bomba, Brandão, Virgílio, Raimundo Dias e Jogo de Dentro. É como se Pelé, Zico, Ronaldinho e demais craques de muitas gerações tivessem se reunido para uma pelada de sábado, em comemoração ao aniversário de um deles.

Todos estão ali em nome da tradição: a mais antiga versão do jogo de capoeira, conhecida como angola. Nela, o ritmo do berimbau impõe movimentos vagarosos, estudados e de maior proximidade ao chão, exigindo malícia e leveza dos jogadores. Entre os iniciados, essa toada de negras raízes é conhecida também por “mandinga”. O nome vem de uma etnia da África Ocidental e diz respeito à capacidade ilusionista dos movimentos e golpes, sobretudo dos mestres lendários cujos atos eram considerados mágicos e cuja mítica narra histórias de corpos fechados, protegidos de bala e faca graças a poderosos patuás, amuletos que carregavam consigo.

Misto de luta e dança, acredita-se que a capoeira chegou ao Brasil com os escravos africanos. Por conta disso, ficou marcada por uma aura de clandestinidade. A prática foi legalmente criminalizada em 1890, e os “mandingueiros” passaram a ser tratados como transgressores da ordem pública. A repressão no Rio de Janeiro desterrou a maioria deles para a prisão em Fernando de Noronha. Na Bahia, contudo, a lei não foi levada com tanta consideração. Apenas em 1922 os baianos passaram a ser perseguidos com rigor, graças ao famigerado Pedrito, o chefe de polícia de então.

Dessa época emergem nomes como o mais famoso mandingueiro de todos os tempos: Besouro Preto, nascido em 1895. (Consta que ele recebeu o apelido porque uma vez, após ser preso, os soldados encontraram sua cela vazia, preenchida apenas pelo zumbido do inseto voador.) Valentão e de-sordeiro, tinha o corpo fechado, mas não resistiu aos encantos de uma mulher – que lhe quebrou a proteção – nem à faca de ticum, madeira afiada, própria contra feitiços, que perfurou seu corpo numa emboscada, em 1924.

Anos depois, em 1928, a capoeira dividiu-se. Mestre Bimba criou a chamada “luta regional baiana”, em que adotou golpes de lutas marciais japonesas, como o jiu-jítsu, e o batuque, outra manifestação afro-brasileira.

Os mandingueiros, contudo, negaram-se a incorporar as inovações de Bimba. Entre os mais resistentes estava um mestre lendário, Vicente Ferreira Pastinha, o primeiro a articular um espaço formal para prática dos angoleiros, o Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941. Seus discípulos ainda hoje estão entre os mais conceituados mestres – caso de João Pequeno, 87 anos, e João Grande, 72. “Aos dois eu ensinei o pulo-do-gato”, disse Pastinha certa vez. Outro seguidor dele vivo é mestre Fernando, 72 anos, que mora em Saubara, cidadezinha no Recôncavo Baiano. “Pastinha jogava sempre com roupa branca, e só sujava a ponta da gravata”, recorda.

A divisão entre duas modalidades lançou a angola num relativo esquecimento. No começo dos anos 1980, Pastinha faleceu, cego e abandonado a despeito de sua fama. Longe de sua arte, João Grande trabalhava num posto de gasolina de dia e fazia apresentações em shows folclóricos à noite. A maioria dos angoleiros havia deixado de praticar. Foi então que, em 1981, Pedro Moraes Trindade retornou a Salvador depois de ter fundado no Rio o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho. A mobilização de Moraes e seus discípulos trouxe de volta à atividade João Grande e outros renegados. O local da resistência não poderia ser mais simbólico: um salão dentro do Forte Santo Antônio, a mesma edificação no centro histórico de Salvador onde João Pequeno já tinha fincado sua escola. “Na época, havia poucas pessoas em atividade”, disse-me Moraes quando o visitei no forte.

A história dos mandingueiros é a de superação dos limites impostos por uma sociedade que marginalizou e deixou-se seduzir pela capoeira. Um símbolo da cultura nacional, ela nunca teve apoio suficiente para que seus mestres pudessem viver com remunerações dignas de sua importância. Mas angola resiste – e o encontro anual dos mestres em Arembepe é a prova viva. Quando eu entro na roda, o mundo se move, e a metáfora ganha vida.

por Maurício B. de CastroFonte: National Geographic Brasi

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