Oposição ao acordo ortográfico volta à tona em Portugal e cria temores de que a adoção das novas regras não seja unificada
O escritor português Vasco Graça Moura avisa, em entrevista por e-mail, que a publicação de suas respostas está condicionada ao “respeito da ortografia portuguesa sem as modificações do Acordo Ortográfico”. Moura tornou essa condição questão de honra desde que, no mês passado, proibiu o seguimento das novas regras de ortografia no Centro Cultural de Belém, importante instituição de Portugal da qual é presidente. Poderia ser um mero capricho do ferrenho opositor do acordo, porém o caso ganhou relevância política quando o Secretário de Estado da Cultura de Portugal, Francisco José Viegas, saiu em defesa do escritor, afirmando que as regras deveriam ser aperfeiçoadas e que “Vasco Graça Moura escreverá como quiser”. O acordo está oficialmente vigente no país desde o início de 2012, e o período de transição vai até o fim de 2014.
A política, nesse caso, tem relevância internacional porque envolve outros cinco países que já ratificaram o acordo assinado em 1990, incluindo o Brasil. As novas regras estão vigentes por aqui desde 2009, e o prazo de transição da antiga para a nova ortografia termina no fim deste ano. Por essa razão, as declarações de Viegas — que ocupa o cargo equivalente ao nosso ministro da Cultura — levantaram temores de que, depois de mais de duas décadas de idas e vindas, o acordo acabasse por ser implementado apenas no Brasil. O temor é reforçado diante da resistência de diversos setores da sociedade portuguesa, que vem levantando acalorados debates nos últimos anos.
No Brasil, o Ministério da Educação (MEC) informou que está ciente das resistências à entrada em vigor do acordo em Portugal, mas aposta que é possível contorná-las por meio do diálogo. O MEC entende que um eventual recuo português em relação ao acordo seria um fato inédito e um incidente diplomático de razoável proporção, uma vez que Portugal aderiu ao acordo negociado no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), formada por oito Estados.
Em entrevista ao GLOBO por e-mail, Viegas sugeriu que suas declarações foram mal interpretadas. Ele afirmou ter se referido à liberdade de Vasco Graça Moura como escritor, como a de qualquer cidadão. E disse que não sugeriu alterações no Acordo Ortográfico, e sim no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) — um compêndio das palavras da língua segundo o novo acordo. Segundo Viegas, a versão de um Volp comum aos oito países signatários do acordo será apresentada numa reunião interministerial da CPLP, ainda este ano. Nessa reunião, os especialistas de cada país definiriam os passos seguintes na elaboração desse Vocabulário unificado, até 2014.
— Não devemos confundir o Acordo com o Volp. O Acordo está assinado e em curso, e não há nem poderia haver do nosso lado qualquer revisão ou retrocesso. Portugal já investiu bastante na sua adopção pelas escolas — afirma Viegas, mantendo a antiga ortografia portuguesa. — Quanto ao Volp, as modificações serão definidas de forma multilateral entre os especialistas e acadêmicos dos vários países, nos casos que venham a entendê-lo. No caso português, cabe principalmente ao Iltec, o nosso instituto de linguística.
Presidente da Comissão de Língua Portuguesa no Ministério da Educação do Brasil desde 2006, Godofredo Oliveira Neto é cético quanto à elaboração de um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) comum aos oito países até 2014. Ele afirma, no entanto, que não há qualquer risco de que as regras sejam modificadas no Brasil, pois a Academia Brasileira de Letras (ABL) já publicou, em 2009, um Volp seguindo o acordo.
— A implantação do acordo no Brasil é página virada. As regras foram discutidas pela ABL em nível internacional, aprovadas pelo Congresso durante o governo Fernando Henrique e regulamentadas dez anos depois, como exigiu a lei, já no governo Lula — diz o escritor e professor, que de 2007 a 2011 foi presidente do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, órgão da Comunidade de Países da Língua Portuguesa (CPLP). — O acordo está oficialmente aprovado em Portugal e no Brasil. Recebi uma cópia de documento do Ministério da Educação de Portugal a seus professores informando sobre as novas regras.
O escritor Vasco Graça Moura cita o artigo 2 do texto de 1990 para argumentar que, como esse vocabulário comum não existe, a adoção do acordo seria ilegal (leia a entrevista ao lado). Responsável pelo Volp editado pela ABL, o filólogo Evanildo Bechara sustenta que não há qualquer conflito legal. O artigo 2, ressalta ele, refere-se a “terminologias científicas e técnicas”. Isso significa que não é necessário um compêndio das palavras cotidianas comum aos países, e sim que os termos técnicos sejam unificados — uma determinação que caberá a instituições científicas específicas.
Graça Moura também sustenta que o acordo é ilegal porque não foi ratificado por Angola e Moçambique. Entretanto, um protocolo modificativo determinou que o acordo poderia entrar em vigor com a ratificação de no mínimo três países. Em 2007, essa condição estava cumprida, por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Por isso, em 2008, o governo brasileiro definiu um calendário para sua efetiva aplicação. No mesmo ano, o Conselho de Ministros e o Parlamento de Portugal aprovaram a aplicação das novas regras, mas definiram um prazo de transição de seis anos, e não de quatro como no Brasil.
Editores não preveem mudanças no mercado
De lá para cá, a oposição mais forte ocorreu em Portugal, onde o acordo ainda não é adotado por alguns jornais, como o “Público”, mas já é seguido pelo “Expresso” e pelo “Diário de Notícias”. Como ressalta Bechara, as novas regras são muito mais numerosas para a grafia brasileira do português. Apesar disso, calcula-se que 1,6% do vocabulário será afetado em Portugal, contra cerca de 0,5% no Brasil. O argumento que os portugueses mais usam para criticar o acordo diz respeito à extinção das consoantes que não são pronunciadas, mas indicam a pronúncia da vogal que antecedem, em palavras como “adopção”.
— A língua portuguesa tem numerosas palavras com diferença de timbre, mas nem por isso os portugueses têm um artifício gráfico para mostrar essa diferença. É um argumento furado — diz Bechara. — O brasileiro tem muito mais mudanças a enfrentar. Pessoas como o Vasco Graça Moura escrevem artigos de 600 palavras, e não se veem alterações. Na realidade, há má vontade de abrir mão do procedimento ortográfico absurdo de escrever uma consoante que não se pronuncia. Uma criança que está se alfabetizando e ouve a palavra Egito jamais pensará em escrever Egipto.
Nos bastidores, o MEC avalia que o pano de fundo da oposição portuguesa ao acordo seria político e econômico, uma vez que Portugal temeria que a indústria editorial brasileira passe a ser hegemônica nos países lusófonos, graças à padronização do idioma. Editores brasileiros e portugueses, no entanto, não veem grandes reviravoltas no mercado em função do acordo ortográfico, já que a sintaxe e o vocabulário se mantêm distintos.
— No início se imaginou que haveria uma contrapartida entre os editores de cada país, mas a língua não vai ficar uniforme, porque a questão vai além da ortografia. Além disso, os contratos das editoras são territoriais, por isso é um erro pensar que as edições serão únicas — diz Sônia Jardim, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros no Brasil.
Editora da Tinta-da-china, a portuguesa Bárbara Bulhosa começa este mês a lançar seus livros no mercado brasileiro, seguindo por aqui as novas regras, pois elas já são obrigatórias para nossas editoras. Bárbara diz que o acordo não teve qualquer peso em sua decisão de publicar no Brasil.
— Tenho muitas dúvidas em relação ao acordo, não acho tão necessário. Mas esse comportamento de oposição dos portugueses parece disparatado e um pouco xenófobo. O componente ex-colonizador me incomoda. O que o Graça Moura fez não se pode fazer. A postura de Viegas também é dúbia. As escolas estão a aprender com o acordo, e o governante diz que cada um escreve como quer. O governo tem que dar diretrizes, e se fizeram o acordo temos que respeitá-lo — diz Bárbara, que em Portugal cumpre a vontade de seus autores quando se trata de seguir ou não o acordo.
Bárbara se espanta com o fato de a ortografia ter tomado tamanha relevância nacional, quando a aproximação cultural entre os dois países precisaria de outros incentivos. O escritor angolano José Eduardo Agualusa concorda. Apesar de favorável ao acordo, ele vê a questão como irrelevante diante de entraves maiores, como a taxa de importação de livros entre os países de língua portuguesa. Agualusa participou de diversos debates sobre o acordo em Portugal com Vasco Graça Moura, nos quais presenciou espectadores revoltados, gritando frases como “a língua é nossa”.
— Muitos portugueses ainda têm uma visão imperial da língua, e o acordo deu voz aos reacionários. São nacionalistas que desconhecem a língua, não sabem que o português nasceu na Galícia e desde o início teve contribuição africana, pelos árabes — diz Agualusa.
O angolano defende o acordo sobretudo por razões pedagógicas, já que países como Angola, onde há pouca produção editorial, poderiam importar livros didáticos de Brasil e Portugal mais facilmente. Sônia Jardim diz que, por enquanto, ainda não houve mudanças no comércio de livros entre os países. Nem é surpresa, já que o acordo anda a passos lentos em Portugal, cuja ortografia tem maior influência sobre os países de língua portuguesa, e Angola e Moçambique — em que o português é uma entre mais de 20 línguas — nem ratificaram o acordo.
Apesar de opositor ao acordo, o escritor moçambicano Mia Couto também vê, como Agualusa e Bárbara, questões mais relevantes a serem discutidas pelos países da CPLP:
— Em Moçambique, sabemos que a língua portuguesa representa um pilar de construção nacional e estamos apostados em generalizar e popularizar o português. O acordo surge no contexto de um país muito pobre que ainda briga para ter manuais escolares e escolas suficientes para a maioria da população rural. Para quem tem que construir esse imenso edifício, a notícia de uma nova norma ortográfica não pode ser vista como uma boa nova. A primeira pergunta é: quem paga? As razões do nosso distanciamento são outras e têm a ver com questões de ordem política e de estratégia. Essas são as questões que devíamos discutir.
FONTE:PROSA ONLINE / O GLOBO.COM
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