Segue, abaixo, Carta do Quilombo
de Rio dos Macacos, documento assinado por diversas comunidades quilombolas e
organizações, entre as quais a CSP-Conlutas, que denunciam a situação de
opressão e miséria a que são submetidas às comunidades quilombolas.
CARTA
DO QUILOMBO DE RIO DOS MACACOS-BAHIA
Quilombo Rio dos Macacos, Bahia,
5 de março de 2012
Para nossas comunidades, o
Território possui um significado completamente diferente da que ele apresenta
para a cultura ocidental hegemônica. Não se trata apenas da moradia, mas sim do
elo que mantém a união do grupo, e que permite a transmissão de nossa história,
nossos cantos e danças, forma de plantar e colher, de geração em geração,
possibilitando a preservação da nossa cultura, dos valores e do modo peculiar
de nossas vidas enquanto comunidade étnica.
Sabemos que há mais de três
séculos, as comunidades quilombolas são vítimas de violentas campanhas do
Estado Brasileiro, que objetiva espoliar os nossos territórios, destinando
vastas extensões das terras ao agronegócio, por meio de chacinas, assassinatos
e despejos violentos, um verdadeiro genocídio!
Nós, das diversas
comunidades quilombolas signatárias de todo Brasil vimos por
meio deste, denunciar à sociedade brasileira e ao mundo a forma brutal como o
Estado Brasileiro tem nos tratado, onde, em pleno século XXI, o governo
brasileiro reedita as medidas sociopolíticas que
patrocinam a destruição sistemática dos nossos modos de vida, através de
supressão física e opressão cultural.
O Governo Lula chegou ao seu
último ano de mandato emitindo apenas 11 títulos às comunidades quilombolas,
com a promessa de que seriam 57 comunidades em 2010.
[1] Até dezembro de 2011, somente 3 das 44 áreas
decretadas para desapropriação haviam sido tituladas
pelo governo federal. As comunidades beneficiadas foram Família Silva (RS),
Colônia São Miguel (MS) e Preto Forro (RJ). A primeira teve suas terras
parcialmente tituladas em 2009 e as outras duas em 2011. [2]
No novo PPA (2012-2015), já sob o
governo Dilma, as comunidades quilombolas não mais contam com um programa
específico; na transição para o novo PPA não mais existe o programa
Brasil Quilombola. O novo programa, denominado Enfrentamento ao Racismo e
Promoção da Igualdade Racial, e que tem na Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial-SEPPIR o órgão gestor responsável tem para o ano de 2012,
um orçamento no valor de R$ 73, 125 milhões, e para os três anos seguintes,
mais R$ 239, 498 milhões, totalizando no período de 2012-2015 cerca de R$ 312, 623
milhões. Considerando-se os números apresentados, um orçamento ainda menor que
o anterior (2008-2011) [3]
Além dos números
apresentados, a política adotada pelo Estado Brasileiro em relação às nossas
comunidades é pautada pela barbárie, operada através do uso abusivo da máquina
estatal, leis, bens públicos, força repressiva e expropriação dos recursos que
seriam de toda a coletividade. Tecnologia há mais de três séculos solidamente
instalada e tendo como sua principal base de sustentação o controle do acesso à
justiça. [4]
Nas últimas décadas, como forma
de enfrentar a organização política da comunidade Rio dos Macacos e da
solidariedade de muitos grupos da Bahia e do Brasil, a Marinha protagonizou
inúmeras ações violentas a exemplo do assédio diário à comunidade com dezenas
de fuzileiros armados; invasão de domicílios atentando contra os direitos das
mulheres; uso ostensivo de armamento exclusivo das forças armadas criando
verdadeiros traumas em crianças, adolescentes e idosos, que tiveram casas
invadidas e armas apontadas para as suas cabeças; em 04 de março de 2012, uma
semana após realização de audiência com a presença da Secretaria Geral da
Presidência da República, o quilombola Orlando sofreu atentado contra sua vida,
quando um fuzileiro naval disparou tiro contra o mesmo, com o intuito
de matá-lo, quando este chegava em Rio dos Macacos. Além, há severo
impedimento das atividades econômicas tradicionalmente desenvolvidas pela
comunidade, como a agricultura e a pesca de subsistência como forma de
inviabilizar a permanência no território. Um saldo desse conflito desigual se
evidencia no grande número de crianças, adolescentes e adultos que foram
impedidas ou que foram forçadas a desistir de frequentar a escola. Na
comunidade de Rio dos Macacos, dois fuzileiros ficavam de prontidão num ponto
denominado pela comunidade como “barragem” para impedir a saída e entrada de
pessoas, e quem insistiu foi espancado, preso e humilhado publicamente como
castigo exemplar. Desde a década de 1970 que mais de 50 famílias foram expulsas
do território e se mantém alto nível de hostilidade aos que permaneceram
resistindo. A disputa não se dá apenas no campo objetivo, pois a Marinha, ao
destruir quatro terreiros de Candomblé em Rio dos Macacos, também estabeleceu
uma guerra contra a sustentação simbólica, que incide diretamente no ataque à
memória, à cultura e às tradições, elementos fundamentais à identidade
quilombola. Outra comunidade quilombola, Tororó, vizinha ao Rio dos Macacos,
também tem sofrido com o mesmo processo de violência, realizada pela Marinha do
Brasil.
No território quilombola da Ilha
da Marambaia, no Rio de Janeiro, encontramos um verdadeiro
Estado de Sítio. A administração militar da ilha instaurou, a partir de 1971,
um regime de proibições que decorrem da sobreposição de algumas figuras legais,
cuja aplicação local é ambígua e até mesmo distorcida: área de interesse
militar- freqüentemente confundida com Área de Segurança Nacional; Área de
Preservação Ambiental (APA) – pensada como área de uso exclusivo para pesquisa
científica (Reserva); e área de patrimônio da União – tomada como Patrimônio
Histórico Nacional. Lançando mão da sobreposição e confusão dessas categorias,
os administradores da ilha criam um verdadeiro território de exceção, que busca
dar aparência legal e justificação legítima à estrutura de precariedades
criadas em torno da posse territorial que quase 300 famílias quilombolas mantêm
na ilha há três gerações. [5]
No norte de Minas Gerais, a
Comunidade Quilombola de Brejo dos Criolos enfrenta latifundiários violentos
todos os dias. Reconhecida desde 2004 como Comunidade Quilombola, depois de 6
anos de espera. Em razão desta lentidão, foram realizadas desde 2005 até
os tempos atuais seis re-ocupações de terras, sendo que em três, o conflito
intermediado pela Procuradoria da Republica em Minas Gerais, propiciou a
permanência nas áreas ocupadas. E em uma delas, dado que foi solicitada ao juiz
da comarca a manutenção da posse da terra retomada, cuja representação foi
alicerçada na afirmação constitucional de que estando “ocupando as suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir- -lhes os
títulos respectivos. [6] Para a
emissão do decreto de desapropriação (o único emitido pelo Governo Federal em
2011!), centenas de quilombolas acamparam e se acorrentaram diante do Palácio
do Planalto em setembro de 2011. Registra-se ainda a violência permanente
sofrida pelos Quilombolas Theodoro e Ventura, na serra do Salitre, Pato de
Minas, com lideranças ameaçadas de morte.
No Maranhão, a Anistia
Internacional, diante da violência contra os quilombolas de Salgado, Território
Aldeia Velha, Pirapemas, lançou Ação Urgente em defesa da mesma em dezembro de
2011. Como em outras comunidades afrodescendentes no Maranhão, a
comunidade de Salgado tem sofrido intimidação e ameaças persistentes, por
poderosos proprietários de terras locais, em consequência de sua longa luta
para ter as suas terras tituladas. Em 3 de dezembro de 2011, membros da
comunidade descobriram que 18 animais pertencentes à liderança quilombola Zé da
Cruz foram envenenados e mortos, resultando em grande perda para sua família.
No final de agosto, um pistoleiro local disparou na direção da casa de José da
Cruz, matando um animal. Em 14 de Dezembro, José da Cruz e outros membros da
comunidade encontraram um recipiente de herbicida no poço usado pelas famílias
de Salgado. Em 22 de dezembro, um pistoleiro havia sido contratado para matar
Zé da Cruz, enquanto dois homens armados foram vistos patrulhando os arredores
da comunidade. O processo desapropriatório tramita no INCRA há 12 anos.
No Rio Grande do Sul, as
famílias do Quilombo do Morro Alto, desde 2004, esperam que o Incra complete a
regularização e devolução do território aos Quilombolas. Em 2011, quando
deveriam ocorrer as notificações dos ocupantes não quilombolas, ligados ao
agronegócio, para indenização e saída da área dos mesmos, ilegalmente o
processo foi remetido ao presidente nacional do Incra, sem nenhuma consulta às
famílias. Em razão da lentidão do governo federal, a violência no quilombo somente
aumentou. Grileiros que invadem o território quilombola a mando de grandes
proprietários têm provocado conflitos físicos com membros da comunidade e no
dia 12 de outubro de 2011, o presidente da Associação dos Moradores do Quilombo
de Morro Alto, Wilson Marques foi agredido e recebeu um tiro que pegou de
raspão em sua cabeça. Imaginando que o quilombola estivesse morto, os
agressores fugiram.
Nos meandros deste sistema
de concentração de terra, a violência empregada pelo Estado brasileiro tornou-se
um instrumento tão efetivo de controle e coerção, quanto à única forma de
comunicação entre as estruturas de governo e as nossas comunidades. A força
bruta e os constrangimentos físicos constituíram-se numa forma de relação
legitimada, de maneira explícita, pelos aparatos de poder.
Evidente, pois, que a ação
oficial, nesses casos, padece de uma espécie de racismo institucional, embutido
nas práticas de seus operadores. O resultado é uma tomada de partido de parte
dos técnicos pela lógica dos proprietários de terra ou de grandes
empreendimentos. [7]
Nós, Comunidades
Quilombolas signatárias, não aceitamos esse estado de coisas, que mata e
violenta nosso povo!
Desta
forma, exigimos, de acordo com o Artigo 68 ADCT/CF, Convenção 169 da OIT,
Decreto Federal 4887/2003:
Desistência dos 3 processos
judiciais movidos pela União/Marinha contra a Comunidade Quilombola de Rio dos
Macacos;
Finalização do RTID de Rio
do Macacos com a o prazo de 3 meses, a contar da data desta Carta e imediata
publicação do mesmo no Dário Oficial da União;
Que o INCRA e a Fundação
Cultural Palmares cumpram com seu dever de defesa da comunidade quilombola de
Rio dos Macacos em conflito com a Marinha em todas as esferas;
Elaboração dos 34 RTID’s
das comunidades quilombolas do Maranhão no ano de 2012, conforme acordo
estabelecido entre o Moquibom-Maranhão e INCRA Nacional durante o Acampamento
Negro Flaviano, em 2011;
Conclusão dos processos de
regularização fundiária, com a notificação dos ocupantes não quilombolas de
Morro Alto/RS, imediatamente e conclusão do processo de regularização com a
edição do Decreto de desapropriação por interesse social;
Titulação dos territórios
quilombolas da Pedra do Sal e Marambaia;
Proteção às lideranças
quilombolas ameaçadas de morte em todo o Brasil, por meio dos Programas
Estaduais e Federal de Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos;
Presença da Comissão
Externa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, constituída em 2011,
cujo objetivo é avaliar as violações dos direitos humanos nas comunidades
quilombolas, prioritariamente na Bahia e, seguidamente, no Maranhão, Rio Grande
do Sul, Minas Gerais, Goiás, Rio de Janeiro;
Pela não aprovação da PEC
215, a tramitar no Congresso Nacional, que visa tornar de competência exclusiva
do Congresso nacional a demarcação de terras de índio e de quilombos;
Pelo indeferimento da ADIN
3239, do Democratas-DEM, que visa declarar inconstitucional o decreto federal
4887/2003;
Pela não aprovação do
Projeto de Lei nº 44/2007 de autoria do deputado federal Valdir
Colato (PMDB-SC), que visa sustar a aplicação do decreto federal 4.887/2003;
Pela agilidade do processo de
certificação das Comunidades Quilombolas pela Fundação Cultural Palmares;
Reiteramos a Nota Pública
editada pela MALUNGU- Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes
de Quilombo do Pará, no que se refere à proposta do Governo Federal de
Regulamentação do Direito da Consulta Prévia estabelecido pela Convenção
169-OIT, visto que o formato de discussão proposta pelo Governo possui caráter
excludente em relação à grande maioria das comunidades quilombolas e indígenas
do País;
Assinam
Comunidade Quilombola Rio
dos Macacos-BA;
Comunidade Quilombola Aldeia
Velha-MA
Comunidade Quilombola do
Charco-MA
Comunidade Quilombola de
Cruzeiro-MA
Comunidade Quilombola de
Pericumã-MA
Comunidade Quilombola de
São Caetano-MA
Comunidade Quilombola de
Bom Jesus-MA
Comunidade Quilombola de
Carro Quebrado-MA
Comunidade Quilombola de
Açude-Ma
Comunidade Quilombola de
Brasília-Ma
Comunidade Quilombola de
Ponta-Ma
Comunidade Quilombola de
Nazaré-MA
Comunidade Quilombola de
Mondego-Ma
Comunidade Quilombola de
Cedro-Ma
Comunidade Quilombola de
Lacral/Espírito Santo-MA
Comunidade Quilombola de
Tijuca-Ma
Comunidade Quilombola de
Achuí-MA
Comunidade Quilombola de
Engole-MA
Comunidade Quilombola de
Rio Grande-Ma
Comunidade Quilombola de
Ramal de Quindiua-MA
Comunidade Quilombola de
Mafra-Ma
Comunidade Quilombola de
Bitiua-MA
Comunidade Quilombola de
Mutaca-Ma
Comunidade Quilombola de
Maiabi-Ma
Comunidade Quilombola de
Boa Vista-Ma
Comunidade Quilombola de
Rosário dos Pretos-MA
Comunidade Quilombola de
Mariano dos Campos-Ma
Comunidade Quilombola de
Conceição-Ma
Comunidade Quilombola de
Aliança/Santa Joana-Ma
Comunidade Quilombola de
Sumaúma-MA
Comunidade Quilombola dos
Silva-RS
Comunidade Quilombola do
Fidelix-RS
Comunidade Quilombola do
Morro Alto-RS
Comunidade Quilombola
Candiota-RS
Comunidade Quilombola
Palmas-RS
Comunidade Quilombola
Picada das Vassouras-RS
Comunidade Quilombola
Várzea dos Baianos-RS
Comunidade Quilombola de
Solidão-RS
Comunidade Quilombola
Várzea do Candiota-RS
Comunidade Quilombola
Teodoro/Ventura-MG
Comunidade Quilombola da
Pedra do Sal-RJ
Subscrevem:
Frente Nacional em Defesa
dos Territórios Quilombolas
Comissão Pastoral da
Terra-MA
Movimento Quilombola do
Maranhão-MOQUIBOM
GT Nacional MNU de Luta, Autônomo
e Independente
Casa do Boneco – Itacaré-BA
Campanha Somos Tod@s
Quilombo Rio dos Macacos
CSP-CONLUTAS
Notas
[1]
Conforme destaca o INESC, o Plano Plurianual (PPA) 2008-2011 previu
como meta a titulação de 264 territórios quilombola, dos quais 198 somente
entre 2008-2010. Passados três anos de implementação da Agenda Social
Quilombola (2008-2010) foram emitidos apenas 36 títulos de terra, número
bastante aquém da meta estabelecida em 2007.
[2]
Terras Quilombolas . Balanço 2011 .
Comissão Pró-Índio de São Paulo, disponível em
http://www.cpisp.org.br/email/balanco11/img/BalançoTerrasQuilombolas2011.pdf
[3]
Terras e territórios quilombolas no PPA 2012-2015
[4]
Leite, Ilka Boaventura. Humanidades Insurgentes: Conflitos e
criminalização dos quilombos. In. Cadernos de debates Nova Cartografia
Social: Territórios quilombolas e conflitos /Alfredo Wagner Berno de Almeida
(Orgs)… [et al]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA
Edições, 2010.
[5]
Arruti, José Maurício. A NEGAÇÃO DO TERRITÓRIO: estratégias e táticas do
processo de expropriação na Marambaia. In. Cadernos de debates Nova
Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos /Alfredo Wagner Berno
de Almeida (Orgs)… [et al]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia / UEA Edições, 2010.
[6]
Costa, João Batista de Almeida e Oliveira, Cláudia Luz
de. NEGROS DO NORTE DE MINAS: DIREITOS, CONFLITOS, EXCLUSÃO E
CRIMINALIZAÇÃO DE QUILOMBOS In. Cadernos de
debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos /Alfredo
Wagner Berno de Almeida (Orgs)… [et al]. – Manaus: Projeto
Nova Cartografia Social da
Amazônia / UEA Edições, 2010.
[7]
Andrade, Maristela de Paula. RACISMO, ETNOCÍDIO E LIMPEZA ÉTNICA-AÇÃO OFICIAL
JUNTO À QUILOMBOLAS NO BRASIL
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