"Morrer é uma coisa que se deve deixar
sempre para depois". Com este pensamento Millôr Fernandes viveu 88
anos bem vividos e sua saga chegou ao fim.
"Não vou apresentar Millôr Fernandes:
quem o conhece sabe que eu teria que escrever várias páginas para apresentar
uma figura tão variada em atividades e talentos". Faço dessas palavras
de Clarice Lispector, citadas na abertura de uma entrevista do início dos anos
70 feita ao artista, o prefácio para lembrar um pouco da trajetória de Millôr.
Até porque, mencioná-lo como um dos grandes humoristas que o país já fez, é
confirmar o óbvio.
Graficamente, Millôr foi um conjunto de
traços intencionalmente mal-acabados, agressivos, coloridos. Textualmente foi
irreverente, inúmeras vezes virulento, construído sobre o humor das situações
sociais, políticas e religiosas, o que lhe rendeu bastante indisposição contra
censores nos encrudescidos anos de chumbo. Mas deixemos prevalecer a sua (dele)
própria definição: "Estou sempre contra e solto. Eu faço de tudo. Minha
busca é total!"
Modesto?! Não coube a Millôr ser modesto.
Diante das tantas peripércias em que se aventurou, por que ser modesto? Sem
estilo, sem medo e sem papas na língua, o dono de uma versatilidade admirável,
foi pintor, poeta, autor de teatro, compositor... deixando uma generosa
contribuição para a cultura brasileira.
Millor Fernandes nasceu Milton Viola
Fernandes em 16 de agosto de 1923. Carioca do Méier, leonino metódico, ainda
menino ficou órfão de pai e mãe, e logo separado de três irmãos, aprendeu a ser
feroz defensor de sua vida, habituando-se a batalhar cada passo e a traçar o
seu destino. Uma realidade bastante distante da até então família classe média
com um casarão na Zona Norte da cidade. Naquela época, sem dúvida, nenhum
cientista social apostaria em seu futuro promissor... Eram tempos da pobreza
envergonhada, que marcariam sua história. Mas engana-se que ousou pensar que
estas agruras o fizeram amargo. Muito pelo contrário. Soube como poucos fazer
humor, sorvendo da vida o que valia a pena, se dando o luxo de viver fazendo o
que gostava. Sim, havia doses de causticidade, às vezes, cavalares.
Foi no fim da adolescência que virou Millôr,
uma brincadeira com a sua própria assinatura. Achou mais sonoro, artístico do
que Milton. Estava certo. Nessa época ingressou no jornalismo. Atribuia a Tio
Viola, chefe da gráfica da revista 'O Cruzeiro', este mérito. A
publicação, uma das mais concorridas da época, rendeu-lhe projeção no meio da
mídia e abriu portas para novos vôos.Lá permaneceu até 1962, quando foi
demitido pelo escândalo que causou com a publicação da A verdadeira história do paraíso,
encerrando uma história de 25 anos de colaboração.
Em jornais passou pelo Diário da Noite, O
Jornal e o Última Hora, antes de - no final dos anos 1960 - tornar-se um dos
fundadores do "O Pasquim", semanário reconhecido por seu humor
ousado e inteligente, ativo instrumento de combate ao regime militar.
Conciliava com a experiência a autoria de diversos tipos de peças teatrais,
fase em que se tornou também o principal tradutor das obras de William
Shakespeare no país.
No início de fevereiro de 1985,
passou a colaborador do Jornal do Brasil, com espaço cativo na seção Opinião na
página 11 - onde não poupou em suas frases e desenhos temperados com seu
habitual humor sútil e enxuto. Trabalho que realizou com um perfeccionismo
irremediável até 24 de novembro de 1992, quando comunicou aos seus leitores que
sairia de férias para descansar um pouco. Em carta enviada ao editor,
entretanto, disse que não voltaria por discordar da publicação de críticas de
leitores que não fossem "importantes" ou "respeitáveis
pela argumentação". Esse era Millôr...
Na literatura, foram inúmeros títulos de
sucesso, entre eles Trinta
anos de mim mesmo, Que país é este?, Ministério das
perguntas cretinas e Fábulas fabulosas.
Certa vez, Millôr foi questionado: _"Medo
de morrer"?
Não titubeou, foi certeiro:_"Não. A
eternidade deve ser pior do que morrer..."
Agora, onde quer que esteja, deve estar rindo
de tudo, de todos e de si mesmo.
Frases da coleção de Millôr:
"Divagar e sempre".
"Mesmo quando escrevo sem intenção de
fazer humor, as pessoas riem".
"Nunca pertenci a partidos políticos,
nunca fui escoteiro, nunca fui religioso e nunca tive problemas sexuais".
"Achar que podemos deixar alguém nos
restringir parcialmente a liberdade é igual achar que podemos perder
parcialmente a virgindade".
"Quem se curva aos opressores mostra
o traseiro aos oprimidos".
"Como são admiráveis as pessoas que
não conhecemos bem".
"Não sou mestre. Na verdade me acho
um semestre"
“Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar.”
“O cadáver é que é o produto final. Nós somos apenas a matéria prima.”
“O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é.”
“Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”
“Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem.”
“O otimista não sabe o que o espera.”
“Eu também não sou um homem livre. Mas muito poucos estiveram tão perto.”
“Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.”
“Brasil, condenado à esperança.”
“Brasil; um filme pornô com trilha de Bossa Nova.”
“Todo homem nasce original e morre plágio.”
“O dedo do destino não deixa impressão digital.”
“Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?”
"Repito um velho conselho, cada vez mais válido, sobretudo pro Congresso: Quando alguém gritar “- Pega ladrão”, finge que não é com você"
" Quando os eruditos descobriram a língua, ela já estava completamente pronta pelo povo. Os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado".
"A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho."
"Não devemos odiar com fins lucrativos. O ódio perde a sua pureza".
"Um Homem só é completo quando tem família; mulher e filhos. Desculpe: completo ou acabado?"
"Deus é realmente um ser superior. Não há nada nem parecido no Governo Federal".
"Prudência: E devemos sempre deixar bem claro que nenhum de nós, brasileiros, é contra o roubo. Somos apenas contra ser roubados".
"Feliz é o que você percebe que era, muito tempo depois".
"Aprenda de uma vez: Se você acordou de manhã é evidente que não morreu durante a noite. A felicidade começa com a constatação do óbvio".
FONTE: JORNAL DO BRASIL / O GLOBO
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