Em texto que
"O Globo" recusou-se a publicar, pesquisador argumenta: ditadura foi,
sobretudo, reação das elites contra mobilizações trabalhistas no campo e cidade
Em recente
editorial no qual reconhece que o apoio ao golpe de 1964 foi um erro, o jornal
O Globo justifica de forma reveladora que seu entusiasmo com a queda do governo
de João Goulart era devido ao temor da instalação de uma suposta “República
Sindical” no país. A retórica anticomunista e a histeria conservadora que
contagiavam vastos setores das classes médias e altas tinham um alvo claro: o
crescimento da organização de operários e de vastos setores populares nas
cidades, bem como a impressionante mobilização de camponeses nas zonas rurais.
O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e
amedrontava. O golpe de 1964 foi, antes de tudo e sobretudo, um golpe contra os
trabalhadores e suas organizações.
A presença pública
e as lutas por direitos dos trabalhadores brasileiros, intensas desde o final
da II Guerra Mundial, atingiriam seu ápice no início da década de 1960. Os
sindicatos foram os principais vetores da organização popular naqueles anos.
Mas tal mobilização também ocorria através de associações de moradores e
espaços informais, como clubes de bairros e instituições culturais. Estudos
recentes mostram que, ao contrário do que se supunha, a presença sindical nos
locais de trabalho se fortalecia. No campo, a emergência das Ligas Camponesas,
e suas demandas por uma Reforma Agrária transformadora, surpreendeu o país e
colocou os trabalhadores rurais no centro do cenário político.
Trabalhistas,
católicos, comunistas, janistas, entre diversas outras forças políticas,
disputavam e formavam alianças no interior deste movimento. Greves, protestos e
uma linguagem marcadamente nacionalista e reformista embalavam reivindicações
por transformações estruturais e pela conquista de direitos desde sempre
negados, como a lei do 13o salário e a sindicalização no campo.
Em um contexto
marcado pela Guerra Fria e pelos impactos da Revolução Cubana, esta presença
pública dos trabalhadores significava, para muitos, a antesala do comunismo. A
desenvoltura com que lideranças camponesas e dirigentes do Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT) se aproximavam do governo e do presidente Jango (nunca
perdoado por cultivar essas “relações perigosas”) era particularmente execrada.
A visibilidade desta aliança no famoso comício da Central do Brasil no dia 13
de março foi a gota d’água para os grupos conservadores e golpistas. Apesar da
intensa campanha contra o governo, pesquisas de opinião então realizadas, e durante
muito tempo ocultadas, mostram que a maioria da população apoiava Jango e suas
reformas.
O golpe acabou com
tudo aquilo. E surpreendeu muitos dirigentes sindicais, radicalizados e
demasiadamente confiantes na sua influência política e poder de mobilização.
Para os vitoriosos, era primordial destruir a “hidra comunista e trabalhista”.
Sindicatos em todo o país foram invadidos, sofreram intervenções governamentais
e tiveram seu patrimônio dilapidado. Suas lideranças foram presas, caçadas e,
algumas, assassinadas. A ditadura foi dura desde seu primeiro dia.
Entidades
empresarias, como a FIESP, celebraram a nova era. A queda do governo foi a
senha para a revanche patronal. Milhares de trabalhadores foram demitidos e,
devido à proliferação das infames “listas negras”, tiveram enormes dificuldades
para encontrar novos empregos. A aliança entre empresários e o DOPS que, como
historiadores já demonstraram, vinha de longe, tornou-se ainda mais sólida e
disseminada. Um clima de medo e perseguições passaria a dominar o interior das
empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi
expulso de suas comunidades e muitos foram mortos por milícias privadas e
capangas a serviço de latifundiários.
Uma política
econômica antitrabalhista proibiu greves, comprimiu salários, acabou com a
estabilidade no emprego, facilitando demissões e a rotatividade da mão de obra.
Seu impacto foi tão grande que o ditador Castello Branco viu-se obrigado a
reiteradamente repetir, em vão, que “a Revolução não era contra os
trabalhadores”. O deliberado enfraquecimento dos sindicatos facilitou em muito
a superexploração do trabalho, uma das marcas do regime, que faria do país o
campeão mundial em acidentes e mortes no trabalho no início dos anos 1970.
A mesma ditadura que
tanto reprimiu e controlou os sindicatos e organizações populares chegaria ao
fim, em grande medida, pela força e mobilização dos trabalhadores. Fruto de uma
persistente resistência cotidiana e de transformações de vulto na sociedade
brasileira, as grandes greves que, a partir do ABC paulista, tomaram conta do
país, clamaram novamente por justiça e democracia. Ao mesmo tempo revitalizaram
o sindicalismo e deixaram marcas presentes até hoje em nossa vida política e
social.
No entanto, ainda
sabemos pouco sobre a história dos trabalhadores durante a Ditadura
Civil-Militar. Boa parte do interesse dos estudiosos sobre o período
concentrou-se em outros grupos sociais e temas, o que se reflete na literatura
e na programação dos numerosos eventos que analisam os 50 anos do golpe.
Felizmente, este quadro começa a mudar. Neste sentido, a abertura dos arquivos
governamentais, incluindo o do Ministério do Trabalho, cuja documentação
apodrece, sem cuidado algum, em um prédio da periferia de Brasília, é um passo
fundamental. E sem dúvida, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade
poderá ter um papel decisivo neste encontro do Brasil com sua história.
FONTE:blog do site Outras Palavras em Carta Capital
[Depois de
encomendar um artigo sobre o golpe, “O Globo” preferiu não publicá-lo. Veja
nota do autor a respeito]
1964: o artigo que
O Globo recusou-se a publicar
Jornal encomenda, e
depois veta, texto que expunha aspecto pouco conhecido do golpe: a repressão
aos trabalhadores e sindicatos
Sou professor da
Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) e historiador
especializado em história social do trabalho. Em meados de março, fui procurado
pela assistente da direção da instituição na qual trabalho, questionando se eu teria
interesse em publicar um artigo sobre o golpe de 64 para O Globo. Como em
outros momentos de aniversário de eventos históricos, o jornal solicitava então
aos pesquisadores do CPDOC artigos de avaliação e opinativos. Apesar de
mergulhado em outras atividades, concordei em fazer um curto artigo sobre o
papel dos trabalhadores no golpe e na ditadura, por julgar ser este um tema de
grande relevância acadêmica, política e social. Acredito que o texto aborda a questão por um ângulo bem pouco
explorado nas análises que estão sendo publicadas nos vários órgãos de
imprensa.
Entreguei o artigo
em 20 de março. Para minha surpresa, ele não foi publicado. Segundo informou o
jornal, a não publicação baseia-se em uma série de decisões editoriais que
dizem respeito a espaço, a prioridades temáticas com o surgimento de novas
notícias ou contribuições não previstas etc.
Obviamente, O Globo
não tem obrigação de publicar texto algum, apesar da indelicadeza de solicitar
um artigo e não publicá-lo. No entanto, causa estranheza o fato de que outros
artigos de colegas do CPDOC /FGV encomendados sobre a mesma temática, tenham
sido publicados e o meu não. Difícil não pensar que um parágrafo inicial crítico ao já famoso editorial onde O Globo
reconhece seu erro (de maneira tímida e defensiva, por sinal) no apoio ao golpe
de 64 não tenha tido algum papel na
decisão editorial de não publicar o artigo. Além disso, parece que discussões
sobre movimento sindical e os mundos do trabalho não são muito bem vistas pelo
jornal. No mínimo paradoxal para quem diz defender tanto a liberdade de
expressão.
–
Paulo Fontes é
professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV)
onde coordena o Laboratório de Estudos dos Mundos do Trabalho e Movimentos
Sociais. No momento, é Visiting Fellow no Instituto Re:work da Humboldt
University em Berlim.
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