Rapper lança trilha sonora, esboça roteiro e quer escrever para crianças
Ao lado de Criolo, Emicida é um dos artistas independentes de maior projeção na música brasileira. Suas criações não estão apenas na boca dos jovens das periferias, estão no corpo. Com o seu selo Laboratório Fantasma, que acaba de completar cinco anos, vende bonés, camisetas e moletons. A marca tem dado tão certo que outros artistas, como Caetano Veloso, têm vendido produtos com fabricação pelo selo de Emicida.
Aos 28 anos, ele tem sido presença constante em festivais internacionais. Depois de se apresentar no Coachella, em 2011, acaba de retornar de Austin, no Texas, onde participou pela segunda vez do South by Souhtwest, e foi confirmado no Roskilde, na Dinamarca.
Emicida pensa em atuar em outros campos da música. Autor da trilha da premiada animação O Menino e o Mundo, o MC esboça um roteiro de um filme de ficção e anuncia um documentário sobre o Laboratório Fantasma. O compositor, que fez duas músicas para o próximo disco do Skank, quer também escrever livros infantis.
Ao Estado, Emicida fala do combate ao racismo nas escolas, da música que fez em homenagem ao antropólogo Darcy Ribeiro, dos protestos contra a Copa do Mundo, dos casos recentes de violência policial e do show que faz nesta quarta em São Paulo com Thiago França e Rodrigo Campos. Leia abaixo.
Como surgiu a ideia do show com Thiago França e Rodrigo Campos e como será o repertório?
Tinha o desejo de fazer algo com o Thiago e com o Rodrigo. A gente acabou não tendo agenda pra se encontrar antes. Estou num momento em que tenho pesquisado muito o samba. E acho que desconstruir músicas minhas e reler com outra textura vai me fazer crescer como artista. Vai ser um aprendizado, a gente tem ali dois caras magníficos, e sou muito emocional, não sou um músico técnico, não toco nada. A única coisa que consigo fazer é rima, no máximo tocar uma caixinha de fósforo.
E do repertório de samba, o que você tem ouvido?
Sempre volto no Adoniran. Talvez ele seja um dos únicos artistas que conseguiram chegar tão longe, ser tão popular, com uma voz fora do comum. Tem uma música dele, que provavelmente vai estar no show, que é Despejo na Favela, é muito emocional.
O que mais você ouve?
Tenho escutado muito Moacir Santos. Na época de O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui (disco de Emicida lançado em 2013), a gente pensou em samplear Coisas. Chegamos a levar o disco para o estúdio, mas falei: não, não dá pra mexer num negócio desses às pressas. E acabei de ler Zicartola, que conta a história do bar (de Cartola e Dona Zica). Ficava lendo e mandando mensagem pro Fióti (Evandro Fióti, irmão de Emicida), fazendo uns comparativos com as coisas que a gente vive. De certa maneira, nós fazemos a mesma coisa: uns caras da música que abriram um negócio.
E que balanço você faz desses cinco anos do seu selo, o Laboratório Fantasma?
Estou cansado (risos). Vou em Macapá e tem o "A Rua é Noiz" (frase de Emicida que estampa produtos de sua marca), e pirata. Pirata só vende o que tá vendendo, você nunca vê o disco do Artic Monkeys pirata na favela, tá ligado? (risos) É louco, toda vez que vejo a pessoa com o boné do "A Rua é Noiz", acho que ela vai me reconhecer, mas não. Ganhou essa projeção, acabou virando uma marca independente, era o sonho também, fazer com que a Laboratório caminhasse sem ter que depender do show do Emicida.
Como enxerga o fato de letras suas com crítica social, feitas há cinco anos, continuarem atuais?
A gente vive essa crise de bater na mesma tecla, lutar para uma situação se reverter. Mas a quantidade de moleque que me manda e-mail falando que entrou numa faculdade, você não acredita. Odiei a escola na minha época, repetia de ano por falta. Hoje é preciso redefinir o ensino, a forma com que ele se comunica com o jovem. Tenho tristeza de escutar O Meu Guri, do Chico Buarque, e dizer que essa música poderia ter sido escrita hoje. Não só ela, Como Nossos Pais, do Belchior, as músicas da ditadura ainda são muito atuais. A ditadura ainda é muito dos dias de hoje, está todo mundo na rua, os assassinos estão todos soltos. Tirando nós, está todo mundo livre. Não quero que os moleques da favela tenham que ser um Emicida, cantando rap para poder se emancipar, eu sou uma exceção à regra. Quando começar a ter gente nossa nas faculdades de medicina, engenharia, direito, aí a gente vai inserir outra perspectiva dentro da universidade e das empresas, e vai desenhar um Brasil para todo mundo.
Como você vê os protestos contra a Copa?
Cresci pintando a rua, chegava a época da Copa, a gente juntava dinheiro para comprar tinta verde e amarela para torcer. E, simultaneamente, éramos o hip-hop, estávamos lutando contra tudo isso para que a rapaziada despertou agora. São dois problemas bizarros: a desigualdade social e o racismo. A gente teve três casos pesados. O Amarildo, o Douglas (Rodrigues), que tomou um tiro no peito, sentado, desarmado, e a moça (Claudia Silva Ferreira) que foi arrastada na rua. Rolou a euforia, muita gente falou? Falou, mas quando os moleques de classe média tomaram tiro de borracha na Paulista foi capa de todos os jornais. E essa polícia que está matando na favela desde sempre? A gente tem que rever isso há muito tempo. É bem sério, são bandeiras que para a gente não são novidades, não somos do gigante que acordou, porque nós não dormimos: de fome e de medo.
Compositores têm buscado referências não só musicais. Thiago França fez Malagueta, Perus e Bacanaço, inspirado no conto do João Antonio, Racionais fizeram inspirados no Marighella, e você fez uma música em homenagem ao Darcy Ribeiro. Como surgiu essa música?
São caras muito importantes para a nossa formação, só que você não vê nos livros de história, na televisão. Tinha o lance de desenhar o país fora do clichê. Achei que a música tinha que ir mais pelo viés da esperança, da reflexão sobre o Brasil, do que falar de água de coco, Cristo Redentor, bateria da Mangueira. Quando, em Obrigado, Darcy, falo "um povo que tem como seu maior bem gritar gol", não estou fazendo uma crítica às pessoas serem apaixonadas pelo futebol, estou fascinado pelo modo como, no meio de tantas mazelas, as pessoas conseguem achar força para isso.
Não só os nomes que você citou, mas a própria história da África aprece muito pouco dentro das escolas...
Ano passado fez dez anos da lei 10.639, que obriga a história da África a fazer parte da grade curricular. Mas é muito delicado, o racismo come solto na infância. É lá que a gente precisava trabalhar. É muito difícil você inserir a história da África num lugar onde as pessoas veem o cabelo crespo como um crime. Tenho dois trabalhos: acompanhar o que a escola ensina para a minha filha e tenho que ensinar para ela que o cabelo dela é bonito do jeito que é, que a cor da pele dela não é um defeito. Comprei até uns tutoriais de como escrever livro infantil, quero conversar com as crianças.
FONTE: Lucas Nobile - Especial para O Estado de S. Paulo
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