Estádios do país têm 14 casos que se tornaram públicos desde
fevereiro de 2013. Lei é dúbia, árbitro relata medo de represálias e clube é
punido com rebaixamento
No dia 13 de março, a presidente do
Brasil, Dilma Rousseff, abriu as portas do Palácio do Planalto para receber
Paulo César Tinga, meia do Cruzeiro, e o árbitro gaúcho Márcio Chagas da Silva,
ambos vítimas recentes de manifestações racistas em estádios de futebol. Não
participaram do encontro, e tampouco são conhecidos nacionalmente, personagens
como Pantico, Zambi, Dudu e Dida. Todos eles são jogadores. E fazem parte de uma
já longa lista de profissionais do futebol que denunciaram supostos casos de
racismo dentro do país no último ano. E que pouco foram notados.
Contabilizados apenas episódios que
se tornaram públicos, ocorreram ao menos 14 acusações de racismo em estádios brasileiros
desde fevereiro do ano passado - a última nessa quinta-feira, quando Marino, do
São Bernardo, foi a uma delegacia prestar queixa contra um torcedor do Paraná.
É como se uma vez por mês alguém saísse de campo, do Norte ao Sul do Brasil, se
sentindo vítima de preconceito por causa da cor de sua pele. Há atletas de
clubes grandes, casos de Inter e Santos, mas também de equipes menores:
Uberlândia, Pimentense, Sapucaiense. Juntos, famosos e anônimos formam um
panorama assustador: o país que vai receber a Copa do Mundo dentro de dois
meses é palco de repetidas manifestações racistas.
O cenário abre espaço para dois
pontos polêmicos - quem punir e como punir. A legislação esportiva dá margem
para punições rígidas, mas o texto é dúbio em uma questão central: até onde
penalizar os clubes aos quais estão ligados os agentes das manifestações
racistas. Geralmente, as penas englobam multas e perdas de mando de campo. Mas houve uma revolução nesta quinta-feira:
o Esportivo teve nove pontos retirados na tabela e acabou rebaixado no
Campeonato Gaúcho pelo episódio envolvendo Márcio Chagas. Cabe recurso no STJD.
Paralela à discussão sobre as penas,
existe um ambiente que dificulta a exposição desses gestos: o temor de
represálias em casos de denúncias, a timidez dos clubes no combate ao
preconceito e a permissividade do meio esportivo a gestos que em outras esferas
são mais condenados - como se chamar alguém de macaco em um campo de futebol
fosse diferente de fazê-lo em um restaurante, por exemplo.
QUEM PUNIR E COMO PUNIR
O parágrafo primeiro do artigo 243-G
do Código Brasileiro de Justiça Desportiva abre a possibilidade de um clube
perder pontos ou até ser excluído de uma competição em casos de racismo. Mas
tem uma ressalva: se a discriminação for "praticada simultaneamente por
considerável número de pessoas". É aí que mora a primeira questão: quantas
pessoas são necessárias para se definir a ideia de "considerável
número"?
Ninguém sabe. O que o texto implica
é que manifestações individuais e manifestações coletivas de racismo devem ter
punições diferentes. O extremo da lei, com perda de pontos e exclusão,
costumava ficar longe da pauta. Mas a pena aplicada ao Esportivo nesta
quinta-feira muda esse panorama.
O clube gaúcho inicialmente havia
perdido cinco mandos de campo e levado multa de R$ 30 mil depois de o árbitro
Márcio Chagas da Silva sofrer ofensas racistas durante jogo contra o
Veranópolis e encontrar bananas em seu carro após a partida. Ele recorreu. Em
novo julgamento, a punição foi muito diferente: perda de nove pontos e seis
mandos de campo, mais multa de R$ 30 mil. Com isso, o clube foi rebaixado para
a Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho.
O tamanho da penalização à equipe de
Bento Gonçalves resulta da ideia de manifestação coletiva presente no CBJD.
Segundo Márcio Chagas, os gritos durante o jogo partiram de um grupo de 15 a 20
pessoas. E seu carro, onde foram colocadas bananas, estava nas dependências do
clube.
Aí pode estar a diferença para a
pena que sofreu o Mogi Mirim, que inicialmente teve seu estádio, o Romildão,
interditado e foi condenado a pagar R$ 50 mil de multa por um torcedor ter
chamado o volante Arouca, do Santos, de macaco. O Mogi entrou com recurso e
conseguiu efeito suspensivo da pena. O novo julgamento, na última quarta,
reduziu o valor pela metade. O estádio está liberado.
A discussão sobre como punir um
clube em situações assim divide opiniões - e o tamanho da pena, mais ainda.
Afinal, a entidade tem culpa de ter um torcedor racista? O procurador-geral do
STJD, Paulo Schmitt, entende que as agremiações sempre devem ser julgadas em
casos da racismo, seja quem for o agente da manifestação - torcedor, dirigente,
jogador.
- Clubes já respondem por violência
dentro dos estádios, seja por meio de tumultos, desordens, arremesso de
objetos, invasões etc, e devem ser também responsabilizados por essa forma de
atraso social. Nesse aspecto, nossas normas disciplinares são até mais
abrangentes do que as da Fifa e não se restringem apenas a atos de racismo, mas
qualquer forma de preconceito vedado pela Carta Constitucional. E todos que
praticarem esse grave desvio de comportamento devem ser processados e julgados
pelos tribunais desportivos, do torcedor ao atleta, do árbitro ao dirigente, e
os clubes em qualquer hipótese - comentou.
O mais complicado, mesmo para os
integrantes do STJD, é a matemática da pena. O presidente do órgão, Flávio
Zveiter, diz que é uma questão de "dosimetria" - ou seja, devem ser
levados em conta agravantes e atenuantes de cada caso. Na visão do jurista, o
clube é responsável por gestos racistas inclusive de seus torcedores, mas é
preciso ter cuidado na hora de punir.
- O clube é responsável pela atitude
do torcedor. Mas tem que haver uma dosimetria. Foi um torcedor? Foram vários
torcedores? Um marginal que vai chamar alguém de macaco tem que ser preso, mas
o clube não pode ser punido por perda de pontos, porque assim vai prejudicar os
demais torcedores. Por outro lado, sem dúvida alguma, o clube é responsável.
Zveiter levou um susto quando soube
que a reportagem contabilizou 14 casos
de acusações de racismo apenas em estádios brasileiros em um intervalo de um
ano - fora aqueles que eventualmente não se tornaram públicos ou foram
silenciados pelas vítimas. Muitos episódios ficam restritos a tribunais
regionais, longe dos holofotes da mídia nacional, e acabam não tendo
ressonância. Diante da reincidência dos casos, Zveiter pretende criar um
mecanismo para que situações assim sempre caiam na esfera nacional - ou seja,
no STJD.
Quem também se surpreendeu com o
número foi o ex-jogador e técnico Alfredo Sampaio, vice-presidente da Federação
Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol e presidente do braço do órgão no
Rio de Janeiro. Diante do fato, ele disse que pretende acionar o Ministério do
Esporte e a CBF para que sejam tomadas medidas em conjunto.
- As medidas necessárias são uma
campanha forte do governo e uma cobrança nossa com entidades esportivas. Esse
número é preocupante - opinou.
A reportagem procurou o ministro do
Esporte, Aldo Rebello, para comentar a reincidência de casos de racismo no
futebol brasileiro. Por meio de sua assessoria, deu uma resposta que se limita
a listar o que diz a Constituição e o código esportivo. Antes, em nota
publicada no site da pasta, o ministro pedira punição exemplar aos responsáveis
por manifestações racistas, a quem classificou como "criminosos".
MEDO DE REPRESÁLIAS
Em 6 de março, Márcio Chagas da
Silva começou a ser chamado de macaco antes mesmo de começar o jogo entre
Esportivo e Veranópolis, na Montanha dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. Seguiu
sendo chamado de macaco durante a partida. E encontrou bananas em seu carro,
inclusive no cano de descarga, ao deixar o estádio. Ele não pensou duas vezes:
colocou tudo na súmula.
Mas o próprio árbitro faz um alerta.
Segundo ele, colegas deixam de denunciar casos de preconceito por medo de
represálias. O raciocínio é simples: em uma denúncia, um clube é prejudicado, e
presidentes de clubes costumam ser próximos a presidentes de federações, que
podem acabar perseguindo o árbitro em questão.
- Muitos têm medo e se omitem. É
medo de represália, de levar o assunto à tona. O pessoal meio que mascara, fica
com medo de represálias em geral, de dirigente, de levar o assunto à tona e não
ser escalado. A arbitragem não é profissional. Somos prestadores de serviço. E
um dirigente pode ter relação mais forte com alguma equipe envolvida na
história. Eu corri sério risco de sofrer alguma represália muito forte, mas
valeu muito mais a pena (denunciar do que se omitir). O grande problema é que
não temos respaldo. Daqui a pouco, não estão escalando determinado árbitro e
vão dizer que é por deficiência técnica.
Flávio Zveiter entende que a
denúncia feita por Márcio Chagas efetivamente ainda possa fazer parte da
realidade brasileira, mas diz que cabe aos árbitros procurar a Justiça
desportiva se sentirem que podem ser perseguidos por terem colocado algum caso
de racismo na súmula.
- Certamente, em alguns locais, pode
haver algum constrangimento. O Tribunal está aberto a receber isso. Não pode
uma pessoa ficar constrangida de denunciar racismo por medo de não ser escalada
no próximo jogo.
AS AGRESSÕES
A imagem das bananas sobre o carro
de Márcio Chagas da Silva é forte - e ajudou a história a se espalhar
nacionalmente, a ponto de ele ser recebido pela presidente da República. Mas há
outras denúncias de conteúdo tão agressivo quanto a do juiz - mas desconhecidas
do grande público.
Lucio,
goleiro reserva do São Paulo de Rio Grande no ano passado, disse que ouviu as
seguintes palavras de um torcedor do Pelotas: "Preto vagabundo, macaco, teu lugar é no
circo". O árbitro da partida era justamente Márcio Chagas da Silva, que
citou o caso na súmula.
Assis,
lateral-esquerdo do Uberlândia, disse no mês passado que foi chamado de
"macaco, negro, safado e fedorento" por um torcedor do Mamoré, um homem de 45 anos que foi detido
pela polícia e alegou ter ofendido o atleta "apenas" como
"safado, vagabundo e pilantra".
Márcio
Chagas, nos dias posteriores à agressão que sofreu em Bento Gonçalves, se emocionou muito ao falar do
caso (veja no vídeo ao lado). Sempre que comenta o assunto, ele cita seu filho
de 11 meses e o temor de que ele sofra preconceito parecido.
- Eu me senti violentado. Fiquei
inerte, chocado com tudo aquilo. Às vezes, somos agredidos e temos a
possibilidade de responder, mas nisso fiquei inerte, sem ação. Fui xingado e
depois me deparei com meu veículo da forma como estava. Agir de forma
sorrateira, como aconteceu, com o ato de colocar bananas, foi sorrateiro, foi
covarde. Sou adulto, sei reagir, sei me
defender. Mas tenho um filho de 11 meses. Será que ele vai conseguir ter esse
discernimento? Não vou aliená-lo de dizer que não vai acontecer. Vai. Vai
acontecer. E ele vai ter que ter sabedoria para lidar com isso, para não se
machucar de forma muito grave.
A constituição federal avisa que
"a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".
EM DISCUSSÃO
Em 2011, o atacante Diego Maurício, defendendo a camisa da
seleção brasileira sub-20, foi vítima de manifestações racistas no Peru,
durante disputa do Sul-Americano da categoria. Três anos depois, no mesmo país, Tinga sofreu agressão
parecida da torcida do Real Garcilaso, em jogo pela Libertadores. É curioso
comparar os comunicados da CBF nos dois
casos. No primeiro, ela diz que
"a manifestação não passou de um fato isolado"; no segundo, pede "punição exemplar"
ao Garcilaso e lembra que até a possibilidade de exclusão do clube está
inclusa no regulamento - o que não ocorreu.
Acontece que vem aumentando a
atenção despertada pelo tema. Nos últimos anos, o Grêmio se viu envolvido em três acusações de racismo: uma de Elicarlos,
do Cruzeiro, em 2009, contra o atacante Maxi López; e outras duas de colorados,
Zé Roberto em 2011 e Paulão no Gre-Nal do último dia 30, ambas contra
torcedores. Ainda no ano passado, o
clube tricolor divulgou um vídeo com uma campanha, protagonizada por atletas,
contra o racismo. Agora, com o caso envolvendo Paulão, voltou a se
pronunciar oficialmente. Em nota, manifestou seu "repúdio a qualquer ato de racismo e discriminação, entendendo
tratar-se de um caso particular e que em nada representa o pensamento da
torcida gremista" e rejeitou "qualquer mácula a sua conduta
institucional neste sentido". O clube foi multado em R$ 80 mil pelo
episódio do Gre-Nal.
Enquanto isso, um grupo de
torcedores do site Grêmio Libertador
iniciou uma discussão para que a torcida pare de se referir aos colorados como
"macacos" ou "macacada". Um dos cantos mais presentes
em jogos do clube tem a seguinte letra: "Somos campeões do mundo/ da
Libertadores também/ Chora, macaco imundo/ Tu nunca ganhou de ninguém". O
argumento de muitos gremistas é de que o termo "macaco", neste caso,
não contém conotação racista, de que na verdade eles estão chamando os
colorados de primatas, de seres irracionais. O Inter até adotou o animal como
mascote de seus projetos sociais - e o apelidou de Escurinho. Mas o debate pode
reverberar no Gre-Nal do próximo domingo, em Caxias do Sul. O árbitro será
justamente Márcio Chagas da Silva, que já avisou que vai parar a partida se
escutar alguma referência que considere racista.
É uma discussão que entra em outro
aspecto do debate sobre racismo: de que as manifestações em um estádio ganham o
calor do jogo e a rivalidade como atenuantes. Há quem não veja em xingamentos
de torcedores um ato necessariamente racista. No caso do Rio Grande do Sul,
mesmo um ídolo dos colorados, o técnico Abel Braga, amenizou a polêmica sobre a
música dos gremistas e disse que não vê conotação racista nela.
Na
Europa, onde brasileiros são vítimas habituais de racismo em campo, as
campanhas são fortes.
Na Inglaterra, a Federação pede que os próprios torcedores denunciem quem se
manifestar de forma preconceituosa em estádios. No Brasil, quando um clube ajuda a
identificar o torcedor de quem partiu determinada agressão, abre o caminho para
evitar uma punição forte - ou até conseguir a absolvição.
No dia 13 de março, a presidente do
Brasil, Dilma Rousseff, abriu as portas do Palácio do Planalto para receber
Paulo César Tinga, meia do Cruzeiro, e o árbitro gaúcho Márcio Chagas da Silva,
ambos vítimas recentes de manifestações racistas em estádios de futebol. Não
participaram do encontro, e tampouco são conhecidos nacionalmente, personagens
como Pantico, Zambi, Dudu e Dida. Todos eles são jogadores. E fazem parte de uma
já longa lista de profissionais do futebol que denunciaram supostos casos de
racismo dentro do país no último ano. E que pouco foram notados.
Contabilizados apenas episódios que
se tornaram públicos, ocorreram ao menos 14 acusações de racismo em estádios brasileiros
desde fevereiro do ano passado - a última nessa quinta-feira, quando Marino, do
São Bernardo, foi a uma delegacia prestar queixa contra um torcedor do Paraná.
É como se uma vez por mês alguém saísse de campo, do Norte ao Sul do Brasil, se
sentindo vítima de preconceito por causa da cor de sua pele. Há atletas de
clubes grandes, casos de Inter e Santos, mas também de equipes menores:
Uberlândia, Pimentense, Sapucaiense. Juntos, famosos e anônimos formam um
panorama assustador: o país que vai receber a Copa do Mundo dentro de dois
meses é palco de repetidas manifestações racistas.
O cenário abre espaço para dois
pontos polêmicos - quem punir e como punir. A legislação esportiva dá margem
para punições rígidas, mas o texto é dúbio em uma questão central: até onde
penalizar os clubes aos quais estão ligados os agentes das manifestações
racistas. Geralmente, as penas englobam multas e perdas de mando de campo. Mas houve uma revolução nesta quinta-feira:
o Esportivo teve nove pontos retirados na tabela e acabou rebaixado no
Campeonato Gaúcho pelo episódio envolvendo Márcio Chagas. Cabe recurso no STJD.
Paralela à discussão sobre as penas,
existe um ambiente que dificulta a exposição desses gestos: o temor de
represálias em casos de denúncias, a timidez dos clubes no combate ao
preconceito e a permissividade do meio esportivo a gestos que em outras esferas
são mais condenados - como se chamar alguém de macaco em um campo de futebol
fosse diferente de fazê-lo em um restaurante, por exemplo.
QUEM PUNIR E COMO PUNIR
O parágrafo primeiro do artigo 243-G
do Código Brasileiro de Justiça Desportiva abre a possibilidade de um clube
perder pontos ou até ser excluído de uma competição em casos de racismo. Mas
tem uma ressalva: se a discriminação for "praticada simultaneamente por
considerável número de pessoas". É aí que mora a primeira questão: quantas
pessoas são necessárias para se definir a ideia de "considerável
número"?
Ninguém sabe. O que o texto implica
é que manifestações individuais e manifestações coletivas de racismo devem ter
punições diferentes. O extremo da lei, com perda de pontos e exclusão,
costumava ficar longe da pauta. Mas a pena aplicada ao Esportivo nesta
quinta-feira muda esse panorama.
O clube gaúcho inicialmente havia
perdido cinco mandos de campo e levado multa de R$ 30 mil depois de o árbitro
Márcio Chagas da Silva sofrer ofensas racistas durante jogo contra o
Veranópolis e encontrar bananas em seu carro após a partida. Ele recorreu. Em
novo julgamento, a punição foi muito diferente: perda de nove pontos e seis
mandos de campo, mais multa de R$ 30 mil. Com isso, o clube foi rebaixado para
a Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho.
O tamanho da penalização à equipe de
Bento Gonçalves resulta da ideia de manifestação coletiva presente no CBJD.
Segundo Márcio Chagas, os gritos durante o jogo partiram de um grupo de 15 a 20
pessoas. E seu carro, onde foram colocadas bananas, estava nas dependências do
clube.
Aí pode estar a diferença para a
pena que sofreu o Mogi Mirim, que inicialmente teve seu estádio, o Romildão,
interditado e foi condenado a pagar R$ 50 mil de multa por um torcedor ter
chamado o volante Arouca, do Santos, de macaco. O Mogi entrou com recurso e
conseguiu efeito suspensivo da pena. O novo julgamento, na última quarta,
reduziu o valor pela metade. O estádio está liberado.
A discussão sobre como punir um
clube em situações assim divide opiniões - e o tamanho da pena, mais ainda.
Afinal, a entidade tem culpa de ter um torcedor racista? O procurador-geral do
STJD, Paulo Schmitt, entende que as agremiações sempre devem ser julgadas em
casos da racismo, seja quem for o agente da manifestação - torcedor, dirigente,
jogador.
- Clubes já respondem por violência
dentro dos estádios, seja por meio de tumultos, desordens, arremesso de
objetos, invasões etc, e devem ser também responsabilizados por essa forma de
atraso social. Nesse aspecto, nossas normas disciplinares são até mais
abrangentes do que as da Fifa e não se restringem apenas a atos de racismo, mas
qualquer forma de preconceito vedado pela Carta Constitucional. E todos que
praticarem esse grave desvio de comportamento devem ser processados e julgados
pelos tribunais desportivos, do torcedor ao atleta, do árbitro ao dirigente, e
os clubes em qualquer hipótese - comentou.
O mais complicado, mesmo para os
integrantes do STJD, é a matemática da pena. O presidente do órgão, Flávio
Zveiter, diz que é uma questão de "dosimetria" - ou seja, devem ser
levados em conta agravantes e atenuantes de cada caso. Na visão do jurista, o
clube é responsável por gestos racistas inclusive de seus torcedores, mas é
preciso ter cuidado na hora de punir.
- O clube é responsável pela atitude
do torcedor. Mas tem que haver uma dosimetria. Foi um torcedor? Foram vários
torcedores? Um marginal que vai chamar alguém de macaco tem que ser preso, mas
o clube não pode ser punido por perda de pontos, porque assim vai prejudicar os
demais torcedores. Por outro lado, sem dúvida alguma, o clube é responsável.
Zveiter levou um susto quando soube
que a reportagem contabilizou 14 casos
de acusações de racismo apenas em estádios brasileiros em um intervalo de um
ano - fora aqueles que eventualmente não se tornaram públicos ou foram
silenciados pelas vítimas. Muitos episódios ficam restritos a tribunais
regionais, longe dos holofotes da mídia nacional, e acabam não tendo
ressonância. Diante da reincidência dos casos, Zveiter pretende criar um
mecanismo para que situações assim sempre caiam na esfera nacional - ou seja,
no STJD.
Quem também se surpreendeu com o
número foi o ex-jogador e técnico Alfredo Sampaio, vice-presidente da Federação
Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol e presidente do braço do órgão no
Rio de Janeiro. Diante do fato, ele disse que pretende acionar o Ministério do
Esporte e a CBF para que sejam tomadas medidas em conjunto.
- As medidas necessárias são uma
campanha forte do governo e uma cobrança nossa com entidades esportivas. Esse
número é preocupante - opinou.
A reportagem procurou o ministro do
Esporte, Aldo Rebello, para comentar a reincidência de casos de racismo no
futebol brasileiro. Por meio de sua assessoria, deu uma resposta que se limita
a listar o que diz a Constituição e o código esportivo. Antes, em nota
publicada no site da pasta, o ministro pedira punição exemplar aos responsáveis
por manifestações racistas, a quem classificou como "criminosos".
MEDO DE REPRESÁLIAS
Em 6 de março, Márcio Chagas da
Silva começou a ser chamado de macaco antes mesmo de começar o jogo entre
Esportivo e Veranópolis, na Montanha dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. Seguiu
sendo chamado de macaco durante a partida. E encontrou bananas em seu carro,
inclusive no cano de descarga, ao deixar o estádio. Ele não pensou duas vezes:
colocou tudo na súmula.
Mas o próprio árbitro faz um alerta.
Segundo ele, colegas deixam de denunciar casos de preconceito por medo de
represálias. O raciocínio é simples: em uma denúncia, um clube é prejudicado, e
presidentes de clubes costumam ser próximos a presidentes de federações, que
podem acabar perseguindo o árbitro em questão.
- Muitos têm medo e se omitem. É
medo de represália, de levar o assunto à tona. O pessoal meio que mascara, fica
com medo de represálias em geral, de dirigente, de levar o assunto à tona e não
ser escalado. A arbitragem não é profissional. Somos prestadores de serviço. E
um dirigente pode ter relação mais forte com alguma equipe envolvida na
história. Eu corri sério risco de sofrer alguma represália muito forte, mas
valeu muito mais a pena (denunciar do que se omitir). O grande problema é que
não temos respaldo. Daqui a pouco, não estão escalando determinado árbitro e
vão dizer que é por deficiência técnica.
Flávio Zveiter entende que a
denúncia feita por Márcio Chagas efetivamente ainda possa fazer parte da
realidade brasileira, mas diz que cabe aos árbitros procurar a Justiça
desportiva se sentirem que podem ser perseguidos por terem colocado algum caso
de racismo na súmula.
- Certamente, em alguns locais, pode
haver algum constrangimento. O Tribunal está aberto a receber isso. Não pode
uma pessoa ficar constrangida de denunciar racismo por medo de não ser escalada
no próximo jogo.
AS AGRESSÕES
A imagem das bananas sobre o carro
de Márcio Chagas da Silva é forte - e ajudou a história a se espalhar
nacionalmente, a ponto de ele ser recebido pela presidente da República. Mas há
outras denúncias de conteúdo tão agressivo quanto a do juiz - mas desconhecidas
do grande público.
Lucio,
goleiro reserva do São Paulo de Rio Grande no ano passado, disse que ouviu as
seguintes palavras de um torcedor do Pelotas: "Preto vagabundo, macaco, teu lugar é no
circo". O árbitro da partida era justamente Márcio Chagas da Silva, que
citou o caso na súmula.
Assis,
lateral-esquerdo do Uberlândia, disse no mês passado que foi chamado de
"macaco, negro, safado e fedorento" por um torcedor do Mamoré, um homem de 45 anos que foi detido
pela polícia e alegou ter ofendido o atleta "apenas" como
"safado, vagabundo e pilantra".
Márcio
Chagas, nos dias posteriores à agressão que sofreu em Bento Gonçalves, se emocionou muito ao falar do
caso (veja no vídeo ao lado). Sempre que comenta o assunto, ele cita seu filho
de 11 meses e o temor de que ele sofra preconceito parecido.
- Eu me senti violentado. Fiquei
inerte, chocado com tudo aquilo. Às vezes, somos agredidos e temos a
possibilidade de responder, mas nisso fiquei inerte, sem ação. Fui xingado e
depois me deparei com meu veículo da forma como estava. Agir de forma
sorrateira, como aconteceu, com o ato de colocar bananas, foi sorrateiro, foi
covarde. Sou adulto, sei reagir, sei me
defender. Mas tenho um filho de 11 meses. Será que ele vai conseguir ter esse
discernimento? Não vou aliená-lo de dizer que não vai acontecer. Vai. Vai
acontecer. E ele vai ter que ter sabedoria para lidar com isso, para não se
machucar de forma muito grave.
A constituição federal avisa que
"a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".
EM DISCUSSÃO
Em 2011, o atacante Diego Maurício, defendendo a camisa da
seleção brasileira sub-20, foi vítima de manifestações racistas no Peru,
durante disputa do Sul-Americano da categoria. Três anos depois, no mesmo país, Tinga sofreu agressão
parecida da torcida do Real Garcilaso, em jogo pela Libertadores. É curioso
comparar os comunicados da CBF nos dois
casos. No primeiro, ela diz que
"a manifestação não passou de um fato isolado"; no segundo, pede "punição exemplar"
ao Garcilaso e lembra que até a possibilidade de exclusão do clube está
inclusa no regulamento - o que não ocorreu.
Acontece que vem aumentando a
atenção despertada pelo tema. Nos últimos anos, o Grêmio se viu envolvido em três acusações de racismo: uma de Elicarlos,
do Cruzeiro, em 2009, contra o atacante Maxi López; e outras duas de colorados,
Zé Roberto em 2011 e Paulão no Gre-Nal do último dia 30, ambas contra
torcedores. Ainda no ano passado, o
clube tricolor divulgou um vídeo com uma campanha, protagonizada por atletas,
contra o racismo. Agora, com o caso envolvendo Paulão, voltou a se
pronunciar oficialmente. Em nota, manifestou seu "repúdio a qualquer ato de racismo e discriminação, entendendo
tratar-se de um caso particular e que em nada representa o pensamento da
torcida gremista" e rejeitou "qualquer mácula a sua conduta
institucional neste sentido". O clube foi multado em R$ 80 mil pelo
episódio do Gre-Nal.
Enquanto isso, um grupo de
torcedores do site Grêmio Libertador
iniciou uma discussão para que a torcida pare de se referir aos colorados como
"macacos" ou "macacada". Um dos cantos mais presentes
em jogos do clube tem a seguinte letra: "Somos campeões do mundo/ da
Libertadores também/ Chora, macaco imundo/ Tu nunca ganhou de ninguém". O
argumento de muitos gremistas é de que o termo "macaco", neste caso,
não contém conotação racista, de que na verdade eles estão chamando os
colorados de primatas, de seres irracionais. O Inter até adotou o animal como
mascote de seus projetos sociais - e o apelidou de Escurinho. Mas o debate pode
reverberar no Gre-Nal do próximo domingo, em Caxias do Sul. O árbitro será
justamente Márcio Chagas da Silva, que já avisou que vai parar a partida se
escutar alguma referência que considere racista.
É uma discussão que entra em outro
aspecto do debate sobre racismo: de que as manifestações em um estádio ganham o
calor do jogo e a rivalidade como atenuantes. Há quem não veja em xingamentos
de torcedores um ato necessariamente racista. No caso do Rio Grande do Sul,
mesmo um ídolo dos colorados, o técnico Abel Braga, amenizou a polêmica sobre a
música dos gremistas e disse que não vê conotação racista nela.
Na
Europa, onde brasileiros são vítimas habituais de racismo em campo, as
campanhas são fortes.
Na Inglaterra, a Federação pede que os próprios torcedores denunciem quem se
manifestar de forma preconceituosa em estádios (veja no vídeo acima). No Brasil, quando um clube ajuda a
identificar o torcedor de quem partiu determinada agressão, abre o caminho para
evitar uma punição forte - ou até conseguir a absolvição.
FONTE: GLOBO.COM / Por Alexandre Alliatti Rio de Janeiro
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