Depois de ameaças, MPF promete seguir questionando Belo Monte
Para colocar em dia uma das principais obras a serem apresentadas em período eleitoral, o governo federal por meio da Advocacia-Geral da União (AGU) ameaça processar membros do Ministério Público Federal (MPF) do Pará que se manifestarem contrários à usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). No dia 1º, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) liberou a licença prévia para o empreendimento, abrindo caminho para o leilão de concessão e exploração da obra.
Em nota divulgada no dia 3 de fevereiro, a AGU acusa os procuradores de privilegiarem suas visões pessoais em detrimento de análises técnicas. “Não é dado a membros do Ministério Público impor seu entendimento pessoal aos demais agentes do Estado, mas apenas a vontade da lei. E esta vontade somente pode ser verificada, em processos complexos como a construção de uma usina hidroelétrica, por meio de um estudo desapaixonado e aprofundado do projeto e de todos os seus atos”, afirma o texto, endossado publicamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A ameaça foi rebatida pelo Ministério Público Federal que, em nota, argumentou que a ação de seus membros atende à Constituição e às leis, e que a atuação do órgão “não será obstada pelo aceno de medidas que, alegadamente dirigidas contra supostos abusos e desvios, revelam intuito intimidatório”.
Principal empreendimento energético do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a barragem de Belo Monte é criticada por organizações sociais e pesquisadores, que preveem uma tragédia socioambiental na região caso o projeto seja concretizado.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o procurador da República no Pará Ubiratan Cazetta fala sobre as irregularidades do processo de licenciamento de Belo Monte e alerta para os riscos de megaempreendimentos na Amazônia.
Brasil de Fato – Qual a avaliação do Ministério Público Federal sobre o empreendimento de Belo Monte?
Ubiratan Cazetta – A gente tem acompanhado isso há muito tempo e nós, como instituição, não temos posição em relação a empreendimentos ou defesa de empreendimentos. A gente luta pelo cumprimento de uma série de regras que devem ser observadas e como esse tipo de empreendimento, de grande porte, é sempre muito complicado, tem o nosso acompanhamento.
O que nós temos visto no caso de Belo Monte: primeiro, desde sempre, há uma falta de transparência em relação aos dados do empreendimento, seus impactos e até mesmo a escolha por ele. Nós achamos que é um empreendimento bastante complexo, que afeta populações tradicionais, que afeta ribeirinhos, municípios do ponto de vista ambiental. Nós achamos que há uma dúvida muito pertinente em relação à viabilidade econômico-financeira do empreendimento, a começar pela variação entre os custos que se cogitou e também da produção de energia, da quantidade efetiva de produção de energia.
A gente tem acompanhado todos esses questionamentos e identificou-se que o licenciamento não observou uma série de requisitos, entre eles alguns que, para nós, obrigatoriamente deveriam constar no estudo de impacto ambiental. Para citar um exemplo, a questão do diagnóstico em relação às comunidades ribeirinhas. Nesse contexto todo, somado à falta de audiências públicas e ao componente indígena da questão que não nos parece ter sido resolvido, nós entendemos que essa pressa em ver a obra licitada ao leilão para que os consórcios que vão receber a possibilidade de explorar o recurso hídrico se formem, tudo isso acaba indo contra o cumprimento das regras ambientais e socioambientais que deveriam ser a base desse licenciamento.
Em relação a essa pressa de tocar o empreendimento de Belo Monte, como o senhor citou, como o MPF analisa também os outros projetos energéticos projetados para a Amazônia, como as hidrelétricas do Rio Madeira?
Acho que falta ao Brasil uma discussão um pouco mais centrada e um pouco menos publicitária sobre alternativas de produção de energia. Nós temos uma tradição de produção de energia hidrelétrica, uma tradição de engenharia nessa área e isso acaba fazendo com que as soluções sempre caiam prioritariamente sobre essa matriz energética. Nós desconsideramos as outras potenciais fontes de energia, tanto as renováveis, como elétrica, eólica, solar ou de biocombustíveis, como também a melhoria no aproveitamento do recurso já instalado nas hidrelétricas. Há dois exemplos em relação a isso. Um na questão da diminuição das perdas de energia na transmissão e distribuição e, outro, na eventual possibilidade de repotencialização das usinas mais antigas.
A questão da discussão do setor elétrico no Brasil é tão focada na hidrelétrica que não consegue ver alternativas. Isso é um erro histórico porque os grandes potenciais hídricos estão na Amazônia, a implantação de todos esses aproveitamentos, como por exemplo quatro ou cinco barramentos no Rio Tapajós, outros tantos no Madeira, outros no Araguaia-Tocantins, e vai acabar condicionando qual é o modelo de desenvolvimento sustentável que se pode ter na Amazônia. E não será um modelo que contempla a diversidade porque esse modelo está voltado à atração de mão-de-obra, uma reprodução de ocupação de uma outra área que não é a Amazônia. Para nós isso é um erro histórico porque você não dá margem para discussão de outras vocações para a Amazônia.
Esse empreendimento produz algum tipo de vantagem para as populações locais ou atende basicamente interesses externos?
Em relação a esse ponto nós não fazemos essa segregação do que seja propriamente interesse amazônico ou não, nós reconhecemos que o sistema elétrico realmente tem um componente federal e deve ser assim mesmo. O que nos preocupa é uma visão de enclave, que é você criar nessas hidrelétricas um enclave econômico em que não haja nenhum tipo de compensação, nenhum tipo de visão dos problemas amazônicos.
Ou pior, que é a importação de um modelo de desenvolvimento do sul-sudeste para a Amazônia, que será um desastre porque não considera exatamente as especificidades da região. Ou então a concentração em algumas atividades, como é o caso da atividade mineral. Nós vamos discutir a vocação mineral da Amazônia mas inserindo essa vocação mineral dentro de um projeto maior que contemple as diferenças e não apenas grandes projetos como Carajás.
Como o MPF recebeu o posicionamento público da Advocacia-Geral da União (AGU) que ameaçou processar membros da entidade que continuarem se colocarem contra Belo Monte?
Recebemos com tranquilidade e entendemos que sobre uma obra desse porte, em um ano eleitoral, sendo a principal obra do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] haja pressões muito fortes sobre a Advocacia-Geral da União e ela tenha tentado mandar seus recados publicamente. Agora, é lamentável esse tipo de comportamento porque não havia nenhum tipo de posição manifestada pelo Ministério Público Federal sobre propositura de ação A, B ou C a não ser a já reconhecida e discutida posição do Ministério Público sobre falhas que nós já vínhamos apontando sobre o licenciamento.
Então me parece que a atuação da AGU foi intempestiva porque ela pressupõe uma agressão que não houve e tenta, de alguma forma, mudar o enfoque da questão. O foco do Ministério Público é um foco técnico, um foco centrado nas questões ambientais e não há nada de pessoal nem nada de partidário ou preconceituoso nessa questão. Nós recebemos o recado público, anotamos e vamos continuar trabalhando da mesma forma como vínhamos antes, esperando que a Advocacia-Geral da União tenha também o cuidado e o zelo que exigiu de nós na própria nota à imprensa [que divulgou].
O que o Ministério Público Federal pretende fazer a partir de agora, com a concessão da licença prévia?
Nós estamos aguardando a recepção de todos os documentos, além da própria licença e das análises que foram feitas pelo Ibama. Vamos estudar todas as condicionantes e todo o licenciamento. Alguns pontos já estão identificados como problemáticos, eu já citei um, que é a falta de inclusão nos estudos de impacto ambiental de pelo menos 12 mil famílias de ribeirinhos que, pelo Ibama, foram considerados como condicionante.
Os outros pontos que nós identificarmos serão objetos de uma ação levando ao juízo e ao Judiciário a possibilidade de discutir se esse licenciamento está correto ou não. Agora, a atuação do Ministério Público não para aí, ela vai continuar sempre zelando pelo cumprimento das regras constitucionais que é obrigação do Estado brasileiro. Então vamos acompanhar o licenciamento, tentaremos demonstrar as falhas e refazer esse licenciamento diante das falhas que se identificarem, vamos acompanhar os leilões e acompanhar quando e, se for o caso, a implantação da obra com todos os problemas que ela vai gerar.
E, para o MPF, qual seria o papel da população nesse processo?
Temos aí sociedade civil organizada e temos obviamente todo tipo de interesse. O importante é que a sociedade brasileira se manifeste claramente em relação a esse projeto de desenvolvimento amazônico. Nós precisamos ter uma manifestação cada vez mais clara da sociedade civil sobre o que ela deseja. Essa postura um tanto passiva que nós, de um modo geral, temos em relação a grandes empreendimentos como esse precisa ser vencida. E a sociedade tem que expor seus problemas, suas dificuldades, o que pensa dessa questão. Isso se dá de diversas formas, desde organizações civis até discussões nos próprios lares para que haja uma manifestação mais clara disso.
Aqueles que tiverem interesse obviamente podem se organizar, podem inclusive discutir em juízo o que entenderem equivocado nesse processo de licenciamento ou no processo todo de Belo Monte. O mais importante é deixar claro que, enfim, estamos acompanhando e que todo esse trabalho é absolutamente técnico mas centrado no reconhecimento de que não se pode colocar um empreendimento desse porte sem discutir com a sociedade antes.
FONTE: AGÊNCIA BRASIL DE FATO
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