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domingo, fevereiro 28, 2010

Chá da fé

Regulamentado recentemente, o uso do chá de ayahuasca foi popularizado no início do século XX com a criação da Igreja do Santo Daime, que introduziu símbolos católicos no culto.



Após muitas idas e vindas, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas regulamentou no final de janeiro o uso do ayahuasca, uma infusão feita com um cipó e uma folha de origens amazônica. Vetando seu comércio e uso terapêutico, a decisão autoriza para fins religiosos o consumo da bebida, que já foi proibida na década de 1980.

Assim, ganham forças as diversas Igrejas que utilizam o chá em seus cultos. A mais famosa dentre elas é a do Santo Daime, que se tornou praticamente uma metonímia para o ayahuasca. No entanto, se as potencialidades enteógenas da bebida são conhecidas pelos povos indígenas há muitos séculos, o Daime tem uma história mais curta.

Elemento comum a diversos povos da Amazônia, inclusive na região andina, o ayahuasca ganhou popularidade no início do século XX com o maranhense Raimundo Irineu Serra, que curiosamente chegou ao Acre para trabalhar na demarcação de fronteiras entre Brasil, Peru e Bolívia. Descendente de escravos, ele foi iniciado nos rituais da bebida por um xamã local e teve uma visão de Virgem Maria da Conceição após ingerir a bebida certa vez. Era o momento fundador da Igreja do Santo Daime, que viria injetar elementos cristãos no já multicultural culto ao ayahuasca.

“Uma coisa importante que ele introduziu foi a dieta, a interdição sexual três dias antes e depois do consumo do chá. Outra coisa importante foi uma certa padronização na produção da bebida, que era inicialmente chamada apenas de Daime. A medida que foram acontecendo relatos de cura, passou a se chamar de Santo Daime. A bebida paulatinamente foi considerada um sacramento eucarístico, assim como o pão e o vinho. Para os seguidores da Igreja do Daime, a bebida e o mestre são uma coisa só”, explica a historiadora Isabela Olivera, que participa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos.
Com as igrejas, o ayahuasca saiu das selvas amazônicas e ganhou grandes cidades do Brasil e do mundo. A Igreja criada por Irineu já está presente em mais de 25 países e deve se expandir ainda mais. No ano passado, o Peru reconheceu a bebida como patrimônio cultural e o mesmo acontecerá aqui em breve. “A legislação brasileira influencia a de outros países no sentindo de promover uma abertura aos rituais do Santo Daime, da União do Vegetal e outras Igrejas”, analisa Isabela.

Antes de sua popularização mundo afora, o ayahuasca já era presente em diversas sociedades das matas amazônicas. Segundo a historiadora, apenas nesta região, a bebida é conhecida por mais de 40 nomes diferentes. “A cultura indígena a considera uma bebida muito poderosa para a cura de diversas doenças. E isto dentro de uma farmacopéia impressionante que eles dispõem”, pontua.

As potencialidades terapêuticas do chá também têm chamado a atenção de cientistas, que buscam aplicações para a cura de doenças como a depressão. Mas o acúmulo milenar dos povos originários sobre o ayahuasca ainda não foi traduzido em fórmulas científicas. “Não existe nenhum estudo científico que demonstre efeitos terapêuticos, apenas alguns que indicam tal possibilidade. Existem pesquisas sobre o uso da substância no tratamento de dependências químicas, por exemplo. Mas não são estudos devidamente controlados”, explica o psicólogo Rafael Guimarães dos Santos.
FONTE: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL

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