Afinal, que Movimento Negro somos nós?
Por: Marcio Alexandre M. Gualberto* - 26/4/2009
Depois de algum tempo retomo com grande alegria minhas tarefas como colunista de Afropress e, sendo assim, já quero começar respondendo a algumas perguntas que me foram feitas pelo seu editor, Dojival Vieira, alguns dias atrás.
Antes de tudo devo dizer que para construir algumas respostas às perguntas a mim formuladas, tive que olhar muito para trás, mas, também projetar uma série de olhares sobre o futuro para tentar construir um cenário que não seja apenas razoável mas que, também, nos propicie falar a outrem além do que simplesmente dialogamos entre nós, editor e colunista.
Dois fatos foram importantes para provocar em Dojival e em mim esse momento dialogal que agora transformo em texto. O primeiro foi uma manifestação pública de apoio ao Ministro Joaquim Barbosa que, construída por dentro do Coletivo de Entidades Negras, resolvemos colocar nas listas de discussão como um posicionalmento político do conjunto do Movimento Negro.
O segundo fator foi eu ter participado na sexta à noite de uma palestra na OAB de Santos onde, convidado a falar sobre o racismo na era Obama, usei o gancho da palestra para colocar alguns posicionamentos políticos que considero ser os grandes desafios para o Movimento Negro no século XXI.
Quando Dojival me diz que Joaquim Barbosa nunca precisou do Movimento Negro e não precisará agora no confronto com Gilmar Mendes, e ao mesmo tempo me questiona a que MN me refiro e lista uma série de movimentos possíveis, me obriga, de certa forma a pensar que estamos no limiar de uma nova era de construção, ou mesmo refundação do Movimento Negro brasileiro.
Nao vou, logicamente, me ater aqui a temas que já escrevi antes como, por exemplo, considerar as várias perspectivas que colocam o MN, mesmo com todos os seus erros, como um dos segmentos do movimento social mais vitoriosos na história do país. Ainda assim, penso que afirmar isso, coloca, se não as coisas em seus devidos eixos, pelo menos gera algum tipo de reposicionamento sobre o qual temos que nos colocar para tentar fazer uma análise isenta do macro-cenário que estamos discutindo.
Não há dúvida que com o passar dos anos para algumas pessoas e setores, ser militante virou questão de sobrevivëncia política e financeira. Não há dúvida que tem gente que tenta se cacifar nos partidos políticos colocando-se como interlocutor da questão racial, sem ser necessariamente reconhecido como tal no âmbito da militância negra. Não há dúvida que tem gente que usa da religiosidade de matriz africana para se colocar como liderança política quando na verdade já estão completamente desgastadas. Não há dúvida que temos os mais diferentes tipos de aproveitadores, chapas-brancas, vendilhões, capitões-do-mato no campo da militância negra brasileira.
Eu posso, como articulador político, como dirigente nacional de uma grande organização, como observador da realidade e como jornalista perceber tudo isso e tenho duas alternativas, ou transformo isso num dilema, ou posso simplesmente dar de ombros e perguntar: e daí!
Para cada consideração negativa que possamos fazer, temos que pensar nas milhares de pessoas, Brasil afora, que fazem da militância seu modo de vida, que resistem nos terreiros de candomblé, nas rodas de capoeira, nas escolas de samba, nas igrejas, nas pequenas ongs que nunca conseguem recursos, nos milhares de centros sociais e culturais, enfim, não basta apenas considerar o aspecto negativo mas ter a certeza que os aspectos positivos são muito mais poderosos e são eles que fazem a real diferença.
Um novo Movimento Negro para um novo século
Quando no seminário de Santos me questionaram sobre o por quê da vitória de Obama, várias poderiam ser as respostas, escolhi falar de apenas duas: o uso revolucionário das tecnologias de informação e comunicação e uma fala ampla que tocou corações e mentes de toda a sociedade americana.
Quando Obama diz "nós podemos", ele coloca um desafio para todos que ouvem essa frase. Eu posso, tu podes, eles podem, nós podemos!!! Não são apenas os negros que podem, não são apenas as mulheres que podem, somos todos nós: nós podemos!
No caso brasileiro, infelizmente, o MN perdeu a possibilidade de diálogo com a própria população negra. Somos homens e mulheres que estamos na militância mas que não conseguimos amplificar nossos campos de diálogo e isso se dá por dois motivos. O primeiro, a meu ver, é a falta de desejo mesmo. Há setores do MN que se sofisticaram tanto, que se acostumaram de tal maneira às poltronas dos aviões e aos ares-condicionados dos escritórios que perderam a vontade pôr o pé na lama, de subir favela e sentir cheiro de esgoto aberto.
No entanto, estes setores são minoritarios e aí há que se questionar então porque os outros setores não ampliam esse diálogo, e aí penso que caímos na nossa efetiva incompetência em falar a língua de nossa gente, em ir aonde o povo está.
Precisamos trilhar novos caminhos
Sou do tipo de pessoa que acredita em articulações entre redes. A minha vida inteira fiz política de diálogo. Mesmo quando forcei confrontos, o fiz apenas para poder solidificar pontes de dialogo mais à frente. Obtive muitas vitórias e também dolorosas derrotas. Faz parte do processo. No entanto, à medida em que a idade chega e com ela a maturidade que nos faz ser menos impulsivos e mais racionais, tendo a perceber que temos a obrigação de começar a pensar que legado deixaremos para as gerações futuras.
Talvez o primeiro grande desafio que tenhamos que superar entre nós seja algo que é muito caro a cada negro e cada negra brasileira que é sua vaidade. Infelizmente, a vaidade, seja ela pessoal, ou institucional (mas uma quase sempre vem acompanhada da outra) tem sido uma das nossas grandes tragédias como movimento político.
No MN ninguem quer ser liderado. Todos e todas colocam-se o tempo todo como lideranças mas, efetivamente, vemos que lideranças temos pouquíssimas. Liderar é antes de tudo ter a coragem precursora de abrir os caminhos, de abrir novas trilhas e trazer o grupo junto. Poucos e poucas têm tido essa coragem política, mas na hora do frigir dos ovos, ninguém quer servir, mas, sim, ser servido.
Precisamos mudar essa mentalidade, precisamos trabalhar em redes, precisamos conversar mais entre nós e precisamos tirar a palavra "eu e meu" do nosso cotidiano. A lógica de que as coisas só acontecem se eu estiver lá tem sido destruidora de uma série de possibilidades políticas que agora, não dá mais pra aceitar. Precisamos avançar e para avançar, infelizmente, às vezes temos que atropelar quem está no caminho.
É fato que para que o novo emerja é necessário que o velho se apague. E é chegada a hora de um novo MN emergir nos rincões do pais, nas pequenas cidades, nas periferias dos grandes centros urbanos. Um MN que tenha cara de povo e vontade do povo em sua condução. Apenas com essas condições nos tornaremos efetivamente um movimento capaz de não só influir na agenda política do país mas tomar essa agenda na mão e conduzi-la de acordo com nossos desejos.
O MN negro que somos hoje pouco importa, o que importa na realidade, é saber que movimento queremos ser; o que queremos para este país e para o nosso povo. Com estas respostas, olharemos o futuro e sentiremos renascer em nós a utopia, mola propulsora da esperança, que nos projeta à frente e nos coloca diante de nossa verdadeira responsabilidade perante a história.
*É Coordenador Nacional de Política Institucional do Coletivo de Entidades Negras - CEN
O Movimento Negro que não somos
Por: Dojival Vieira* - 30/4/2009
Sem que tenha dado causa, estou no meio de uma polêmica com o meu fraterno amigo Márcio Alexandre, sobre os rumos e dilemas com que nos defrontamos; ou dito de outro modo, desafiado a responder a questão proposta no título do seu artigo "Afinal, que Movimento Negro somos nós?"
Previno, de plano, que as chances de chegarmos a um acordo são mínimas, prá não dizer próximas a zero. Ainda assim, como não é da minha natureza fugir da raia, vamos ao debate.
Márcio é um quadro político experimentado. Jornalista, escreveu suas reflexões à propósito de provocações que lhe fiz em privado, quando lançou Manifesto em defesa do ministro Joaquim Barbosa na polêmica com o presidente do STF, Gilmar Mendes.
A mim, a proposição pareceu de saída parente próxima à iniciativa adotada por alguns que, no ano passado, em S. Paulo, propuseram abaixo assinado em favor da candidatura Barack Obama na reta final da campanha à Casa Branca - um factóide, portanto. Nada mais.
Não que ambas as causas não nos digam respeito. Ao contrário. Ocorre que em ambas, como Movimento Social estivemos ausentes. No primeiro caso, o ministro Joaquim Barbosa nunca contou com Movimento Negro algum para chegar a ser o primeiro negro a ocupar uma cadeira no STF e ter a atitude digna que está tendo sem se curvar as vozes da Casa Grande que lá estão (veja o meu artigo Gilmar Mendes e os ecos da Casa Grande). No caso de Obama, por razões óbvias: não votamos.
É notório que o Movimento Negro Brasileiro deixou há muito tempo de ter peso e influência na agenda política do país, e por uma única razão: seus líderes, especialmente os auto-declarados, tornaram-se meros satélites de partidos e de Governos; aceitaram docilmente o papel de despachantes ou de porta-vozes de lobbies apenas em troca de trânsito nas salas e ante-salas do Poder.
Como explicar, por exemplo, aos nossos filhos e às futuras gerações, a atitude da delegação chapa branca que, por ação ou omissão, abriu mão da Relatoria da Conferência de Revisão de Durban, realizada há pouco em Genebra?
Perguntei em privado a Márcio Alexandre, a que Movimento Negro se referia quando propôs o Manifesto. “Aos que estão em Genebra, na delegação chapa branca, escolhida não se sabe por quem, nem a quem representa? Aos que estão comodamente refestelados nos vários "puxadinhos" democraticamente distribuídos pelo Estado - Partidos, Governos, Academia e demais instâncias de Poder?
Aos que, por debaixo de uma retórica revolucionária de botequim e ou de assembléia de Movimento Estudantil, destilam seu ódio cego a todos os que não compartilham de suas teses alucinadas? Aos que se escondem por trás de consultorias negras para viver de "ser negro", negociando gordos contratos com Bancos e instituições congêneres, se dizendo pomposamente "organizações negras";
Aos que vivem comodamente sentados em cima da Causa às custas dos financiamentos da Fundação Ford, Ashokas e congêneres? Aos representantes de lobbies bem articulados que se fazem passar por lideranças de um Movimento Social, mas que na verdade são só isso: lobbistas? Aos que citam Franz Fannon, Malcom X, Zumbi e outros, achando que mostram alguma erudição, mas na verdade, só revelam sua própria ignorância a respeito do pensamento desses líderes?
Aos que praticam diariamente a autofagia contra os pares, reproduzindo por ignorância ou pequenez de espírito, o ódio racista que nos destrói a auto-estima e impede que as vozes mais lúcidas sejam ouvidas? Aos notórios herdeiros dos negros "Pai João", os que vivem do "Sim, Sinhô", os que ficam à espera dos restos que caem da mesa da Casa Grande, e ainda agradecem compungidos quando isso acontece? Eis as perguntas às quais Márcio não deu publicidade, mas eu o faço para que se possa entender o contexto do nosso diálogo, do que e de quem falamos.
Depois de confessar que teve de olhar para trás para construir respostas, meu amigo admite que ser militante passou a ser questão de sobrevivência política e financeira para muitos, acusa a presença de diferentes “tipos de aproveitadores”, chapas brancas, vendilhões, capitães do mato” e outras espécies desta mesma fauna, e conclui com uma pergunta enigmática: e daí?
Em face das questões levantadas – cuja pertinência não contesta, ao contrário, corrobora – o “e daí” de Márcio Alexandre não faz jus à sua trajetória, nem de militante, nem de dirigente.
O que importa na realidade, acrescenta ele, é saber que movimento queremos ser; o que queremos para este país e para o nosso povo. Com estas respostas – continua Alexandre -, olharemos o futuro e sentiremos renascer em nós a utopia, mola propulsora da esperança, que nos projeta à frente e nos coloca diante de nossa verdadeira responsabilidade perante a história”.
Como se vê, a resposta vem embalada em declarações ufanistas, celebração da utopia e tentativa de emprestar tons épicos quando fala em “mola propulsora da esperança e da “nossa responsabilidade perante a história”.
MOVIMENTO OU LOBBIE
Márcio Alexandre transforma resposta em pergunta porque embora os identifique e reconheça, se recusa a ajustar contas com os diferentes tipos de aproveitadores, chapas brancas, vendilhões, capitães do mato”, que – sem terem de ninguém delegação – se apropriaram de um Movimento Social para transformá-lo em espaço e instrumento de suas próprias ambições, aspirações e interesses.
Falamos de conceitos distintos. O que ele chama de Movimento Negro, eu chamo de lobbie – e antes que algum patrulheiro de plantão se pinte para a guerra, antecipo que lobbies são legítimos na democracia, mas a sua pauta é radicalmente distinta da pauta de um movimento social.
Lobbies se pautam pela defesa de interesses de grupos restritos, com freqüências interesses econômicos. Movimento Social se pauta pela defesa de interesses mais amplos que chocam com a ordem e interesses dominantes na sociedade e tem como característica fundamental a solidariedade entre pares.
Em nosso caso, não é de lobbies que precisamos, mas de um Movimento Social ativo, protagonista, altivo, contestador da ordem racista vigente, aberto ao diálogo com amplos setores da sociedade, capaz de fazer alianças para mudar o Brasil.
O que temos, no entanto, é desalentador. Nenhum Governo liga prá nós, a não ser como dóceis instrumentos de cooptação. Essa regressão, camuflada em conferências e marchas, em verdade, só se dá porque o Movimento Negro abdicou do papel de Movimento Social para se tornar um conglomerado de lobbies, com interesses e representantes específicos.
Aceitou os “puxadinhos” nos Partidos, na Academia, nos Sindicatos como espaço único de atuação. Preso a essa lógica, reduziu o horizonte da transformação social às salas, às plenárias e aos discursos. Passou a fazer o movimento circular do cão que tenta morder a própria cauda.
Um novo Movimento Negro para um novo século como propõe Márcio Alexandre, só é possível se ajustarmos contas com os que, comodamente, sentaram-se na condição de “donos” para melhor usufruir das oportunidades e privilégios reservados nos “puxadinhos” do Estado racista aos que aceitam o papel. O Estado racista precisa deles. Eles precisam do Estado racista na opção que fizeram. Nós, os do lado de cá, não precisamos nem do Estado racista, nem deles.
DESATANDO NÓS
Desatar esse nó, eis a questão, eis o verdadeiro dilema. Não é de vaidade que se trata, mas de posição e postura políticas. Qual o projeto que apresentamos ao país para exercer influência na agenda política, além de Congressos, monopolizados por três ou quatro grupos – insuficientes para lotar uma kombi – e que, por sua vez, definem o que devem ou não fazer depois de consultar seus partidos ou os mandachuvas neles instalados?
O Movimento dos Sem Terra tem projeto, concorde-se ou não com ele. Quer a reforma agrária como instrumento de distribuição de renda, de ampliação do mercado interno, de justiça social. E nós, o que propomos? O Movimento dos Sem Terra tem os seus líderes, conhecidos e reconhecidos. E nós, quem são os nossos? Alguém se arriscaria a juntar três deles numa sala e ficar à espera de algum consenso? Sobre qualquer tema. O último que tentou esperou sentado. E desistiu.
Abdias Nascimento, o maior dos nossos líderes vivos, um homem que dedicou toda a sua vida à Causa está vivo. Acaba de completar 95 anos e, graças a Deus e aos Orixás, gozando de boa saúde. Por que ao invés de apenas merecidamente celebrá-lo, não o ouvimos?
Em um país que segue sendo o de maior desigualdade do mundo, em que até mesmo a esquerda tradicional desistiu da luta por mudanças estruturais, é cabível que continuemos nos pautar por uma visão vitimitizada, particularista, racialista, por conta dos quase 400 anos de escravismo e dos 121 de racismo pós-abolição? Claro que não.
É possível tratar de racismo, ignorando as contradições da sociedade de classes, como alguns advogam na linha do “sou negro e basta”? Quando deixaremos a condição de satélites para assumir a de protagonistas? Quando seremos capazes de fazer alianças – a começar entre nós próprios - reconhecendo as nossas diferenças para assumir o pedaço que nos cabe neste latifúndio chamado Brasil?
Quando seremos menos primários políticamente, pessoalmente menos toscos e rudes no trato com nossos pares? Quando identificaremos o ódio gratuito que dedicamos aos nossos pares apenas com um substrato do sistema racista em nós por séculos introjetado, que nos impede qualquer gestão de generosidade, de união, do consenso possível, de construção?
Como é possível, em um país que combina desigualdade social com racismo camuflado, unificar a luta de todo o povo brasileiro por Democracia, pela conquista de oportunidades iguais para todos, que enterre os séculos de cultura discriminatória de que são alvos os pobres negros e não negros pobres, os indígenas das várias nações, as mulheres – negras e não negras - ainda submetidas a herança perversa da sociedade patriarcal?
Nosso Programa, como se vê, é bem mais amplo, do que representantes de lobbies são capazes de enxergar. Não se define pela quantidade de melanina que cada um carrega, nem toma a cor – negra branca ou amarela – como padrão de virtude, de caráter ou merecimento de justiça.
Esse Movimento Negro "emergindo nos rincões do país, nas pequenas cidades, nas periferias dos grandes centros urbanos, capaz de influir na agenda política do país, capaz de tomá-la nas mãos e conduzi-la de acordo com os nossos desejos", é tudo que sonhamos eu, Márcio Alexandre e muito mais gente.
Partimos, porém, de premissas diversas e não temos acordo sobre como chegar até ele. Eu, particularmente, não sei até onde se pode chegar, mas tenho certeza de por onde devemos começar. E acho, sinceramente, que isso só é possível no dia em que tivermos a capacidade de dizer aos pretensos donos desse Movimento Social, travestidos de lobbistas. Chega! Doravante, vocês não falam mais por nós.
*É jornalista, advogado e poeta e editor de Afropress.
FONTE: AFROPRESS
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