Para a próxima semana está marcada a votação do projeto de lei que altera o Código Florestal brasileiro. O deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP) leu seu parecer na última semana, o que reacendeu o debate sobre os interesses implícitos nessa disputa.
Para auxiliar nesse debate, a Terra de Direitos disponibiliza um estudo sobre o histórico dessa legislação, as propostas de alteração e seus impactos para a agricultura familiar camponesa, povos e comunidades tradicionais.
O documento procura identificar se os princípios constitucionais e as garantias públicas e sociais que sustentam o sistema legal de proteção às florestas representam ou não um obstáculo a afirmação dos direitos humanos, como os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à alimentação adequada e à existência da agricultura familiar e camponesa e seu modo de vida.
O estudo foi elaborado em 2009, no momento em que tanto a bancada ruralista e CNA quanto a agricultura familiar camponesa colocavam-se contra o Decreto Presidencial dos crimes ambientais, que exigia a regulamentação da Reserva Legal em 180 dias, sob pena de multa de R$ 500 a até R$ 100 mil, além de multa diária de R$50 a R$500 por hectare ou fração da área da reserva.
De um lado, estava a estratégia do agronegócio em confinar a cobertura verde florestal em Unidades de Conservação sob a responsabilidade do Estado e não como dever constitucional imposto dos proprietários para o cumprimento da função socioambiental (art. 186 CF). Esta estratégia abre caminho para o modelo agrícola baseado em monocultivos para a exportação, dependentes de combustíveis fóssil, agroquímicos e tecnologia monopolizada por transnacionais.
De outro lado, os interesses da agricultura familiar em fazer com que as exceções ao manejo florestal em Reserva Legal (RL) e Área de Preservação Permanente (APP) conferidas a setores da sociedade com modo de vida associado à preservação da diversidade biológica silvestre e cultivada, já previstas em Lei e em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário (Convenção sobre a Diversidade Biológica e Tratado sobre os Recursos Fitogenéticos para alimentação e agricultura da FAO), sejam observadas pelas políticas públicas e órgãos administrativos competentes.
O documento chega as seguintes conclusões:
a) A legislação vigente no país contempla as necessidades de uso sustentável da diversidade biológica ao instituir áreas protegidas, assim como ao incentivar a agricultura familiar camponesa, assentados de reforma agrária, populações tradicionais e povos indígenas à manterem seus modos de vida associados à preservação e ao melhoramento genético da diversidade silvestre e cultivada, os quais conformam o patrimônio genético e cultural do país. O Código Florestal prevê gratuidade e facilidades administrativas à regulamentação da Reserva Legal por estes sujeitos específicos e também autoriza o manejo florestal de APP, regulamentado pelo Conama, para práticas com interesses social e público e com baixo impacto ambiental.
b) O problema para agricultura familiar e povos locais não está nos ditos “obstáculos” legais, como argumenta a bancada ruralista e CNA –defensores de um modelo agrícola fundado no pressuposto da oposição entre área cultivada e área florestal. O problema é político. Cabe às políticas públicas implementarem legislações ambientais e as excepcionalidades legais de manejo que reconhece as boas práticas da agricultura familiar.
c) As mudanças legislativas pretendidas pelo agronegócio, que se concentram nos 11 projetos sob análise na Comissão especial, cujo parecer de autoria do deputado Aldo Rebelo expressam, pretendem:
Mudanças no Código inviabilizam desapropriação por descumprimento da função socioambiental:
Desobrigar o cumprimento socioambiental da propriedade, imposta pela Constituição Federal a partir do princípio de que as florestas, o meio ambiente e o patrimônio genético do país são um interesse difuso pertencente, ao mesmo tempo, a todos e a cada cidadão brasileiro indistintamente. A RL e a APP são medidas administrativas de intervenção do interesse público e social – através do Estado – no direito de propriedade privada. Sem o dever de respeitar o mínimo florestal por propriedade, a fim de garantir as funções ecológicas dos biomas, desconstitui-se a possibilidade de desapropriação da propriedade por não cumprir com sua função ambiental ou socioambiental, dever constitucional previsto no art. 186, II, da CF;
Estadualização do Código Florestal e as flexibilizações ambientais:
Estadualização da matéria ambiental se presta a possibilitar a flexibilização das legislações ambientais e transferir o dever do mínimo florestal por propriedade para os estados, de modo a instituir Unidades de Conservação que permitiriam o livre uso do solo pelos sistemas agrícolas do agronegócio. Essa estadualização da competência pode facilitar, para os grupos locais vinculados ao agronegócio, a ampliação das autorizações excepcionais à agricultura familiar a todos os tipos de exploração da terra, indistintamente. A ampliação é facilitada com a previsão genérica das hipóteses de autorização para intervenção ou supressão de florestas protegidas, podendo ser atividade de utilidade pública ou interesse social autorizadas pelo Conama ou por órgão estadual competente. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), por exemplo, constitui-se em atividade de utilidade pública que já autorizou a implementação de diversas obras sem qualquer análise de impacto ambiental (como a Medida Provisória que autorizou a duplicação da BR 319 sem a necessidade da realização de EIA-RIMA, ou a que autoriza a implantação de empreendimentos se o órgão público competente não se manifesta sobre a autorização dentro de 60 dias).
Código Florestal e as garantias constitucionais:
Seja através dos ZEE (Zoneamento econômico ecológico); do instituto da compensação ambiental em Unidades de Conservação (o que desobriga a manutenção da Reserva Legal); das Cotas de Reserva Legal (CRF – que tornam a cobertura florestal um título ambiental negociado em bolsa de valores) e servidão florestal (arrendamento de RL para terceiros); anistia de reflorestamento para áreas consolidadas de desmatamento; além da possibilidade de pagar para não ter a Reserva Legal a um fundo estatal; ou ainda ter pagamento do estado por “serviços ambientais” prestados ao se deixar a floresta em pé, são iniciativas estaduais já existentes – fortemente influenciadas pelas bancadas ruralistas – e que substituem o dever legal pautado em princípios constitucionais e Direitos humanos, pela regulação econômica da proteção;
A análise dos Códigos estaduais do Mato Grosso, Roraima e Santa Catarina, feita no documento, pode demonstrar como a opção pela competência estadual flexibiliza as legislações ambientais, de modo a inverter completamente a estrutura da norma federal e constitucional e por em xeque a própria existência do ordenamento jurídico como estrutura reguladora. Seria o mesmo que dizer que o Estado paga para o indivíduo abster-se de praticar um crime, ao invés de puni-lo por ele. Dessa forma, as relações econômicas seriam as estruturas reguladoras de todas as esferas da vida, e não o sistema jurídico pautado em princípios e nos Direitos Humanos. As audiências públicas realizadas pela Comissão Especial na Câmara ocorreram principalmente em áreas onde predominam os interesses do agronegócio e a criminalidade ambiental. No Pará, por exemplo, visitou-se apenas Novo Progresso, que está na lista do Ministério do Meio Ambiente dos municípios que mais desmatam a Amazônia. No Mato Grosso, estado que concentra 50% dos campeões da destruição, foram feitas mais audiências do que em qualquer outra região. Em resposta à audiência realizada em Ribeirão Preto/SP, outra fronteira agropecuária aberta com descumprimento do Código Florestal, elaborou-se uma carta em defesa da legislação de florestas vigente, assinada por 126 entidades, representando os mais diversos setores da sociedade, denunciando a restrita divulgação das discussões e a cooptação da Comissão pelos interesses do agronegócio.
FONTE: MST/Equipe Terra de Direitos
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