Todas as noites, um terço dos 850 milhões de habitantes do continente africano vai dormir com fome. São quase 300 milhões de bocas sem terem o que comer regularmente. Desse total, há 237 milhões sofrendo de desnutrição. Somente na África do Sul, considerada a economia mais rica da região, metade da população de 49 milhões vive na linha da pobreza, com menos de US$ 2 por dia, segundo dados do Banco Mundial. Por isso, na África, aumenta o tom do discurso para que a Copa do Mundo-2010 traga mais benefícios do que saciar a fome de futebol de alto nível.
Existe preocupação na Fifa em transformar o primeiro Mundial marcado para o continente mais pobre do planeta no evento que contribua para melhorar as condições de vida locais. Trata-se de um desafio para antes, durante e depois do período da competição - entre 11 de junho e 11 de julho próximos.
No ano em que a África do Sul vai completar 16 anos de democracia, em abril próximo, ainda existem numerosos obstáculos na prestação de serviços básicos do país. Isso é causado por políticas inapropriadas, falta de implementação e de capacitação e até pela corrupção.
Boa parte da população sul-africana vive em townships (guetos) erguidas nos tempos do apartheid. Separavam negros da minoria branca. Até na rica Johannesburgo e vizinhanças, ainda há dezenas de áreas em que a população não dispõe de água encanada e eletricidade. O transporte público é 90% dominado por vans e, só agora, começa a ser organizado com linhas regulares de ônibus, mas em regiões ainda restritas.
A concentração de renda continua nas mãos dos brancos e, agora, de uma nova e pequena categoria dos ricos negros. Isso não os impede de conviver com cortes quase diários de energia elétrica e a falta d'água, problemas comuns até nos bairros mais elegantes de Johannesburgo. São as dificuldades de um país que terminou 2009 com taxa de 24,3% de desemprego, aumento considerável em relação aos 21,9% de 2008. Os crimes violentos diminuíram 3% em um ano, mas os quase 50 assassinatos diários representam número inquietante. A esperança trazida pela Copa, porém, é alta.
- A Copa do Mundo vai fazer emergir uma nova África do Sul, com reflexos em toda a África. É um evento não para nós, mas de todo o continente. Nossos projetos não se limitam aos estádios. O Mundial vai voltar a atenção do mundo para nosso país e o continente - diz, ao GLOBO, Danny Jordaan, ex-ativista contra o apartheid, e, hoje, aos 58 anos, diretor-executivo do Comitê Organizador Local (COL).
No entanto, setores da sociedade sul-africana cobram o fato de o Mundial ser o momento de fazer gols pelos cuidados com a saúde, a educação e o combate à pobreza e ao desemprego.
- A ideia de que quase 3 bilhões de pessoas no mundo vão assistir à Copa do Mundo terá o significado de um ímã para aqueles sul-africanos que têm protestado contra os problemas na prestação de serviços. Os protestos sociais podem crescer - entende o professor Patrick Bond, da Universidade KwaZulu-Natal.
Há duas semanas, moradores da township de Siyathemba, em Balfour, no norte do país, montaram barricadas, atearam fogo a prédios públicos e saquearam propriedades de estrangeiros, durante três dias de protestos contra a má prestação de serviços, como água, luz, educação e transporte. Foi a repetição de atos de violência da comunidade, ocorridos em julho passado.
Enquanto o Congresso Nacional Africano (CNA), partido que domina a política desde a primeira eleição livre, em 1994, ainda alega o racismo do passado para justificar as chagas do presente, outras lideranças políticas cobram do presidente Jacob Zuma mais ações e menos desculpas e promessas 16 anos após o fim do apartheid.
- Zuma prometeu criar 500 mil novos empregos em 2009, muitos dos quais em consequência da Copa do Mundo, mas viu desaparecerem 870 mil postos de trabalho em um ano - critica a presidente da Aliança Democrática (DA), Helen Zille, candidata derrotada nas eleições de abril de 2009.
Danny Jordaan, por sua vez, classifica o Mundial como outro símbolo de transformações na nação em que o direito à liberdade é mais jovem do que seus dois filhos, uma moça de 25 anos e um rapaz de 21.
- A Copa do Mundo criou 20 mil empregos temporários só na indústria da construção civil, mas dezenas de milhares de pessoas ganharam habilidades e experiências que lhes permitirão participar de outros projetos num país que cresce. São pessoas que vieram de um regime de segregação. Em 16 anos de liberdade, a África do Sul vai sediar o maior dos eventos esportivos. Não podemos ser pessimistas - pede o dirigente.
Estudo encomendado pelo Comitê Organizador à auditoria Thornton indica que a Copa do Mundo terá um impacto de 55 bilhões de rands (R$ 13,23 bilhões) na economia sul-africana e que 8,5 bilhões de rands (R$ 2,04 bilhões) serão injetados com 483 mil turistas esperados durante o mega evento. Novos 35 hotéis são construídos nas nove cidades-sede. A geração total de empregos terá sido de 415 mil novos postos. Mas o impacto econômico é contestado por um estudo coordenado pelo Conselho de Pesquisa de Ciências Humanas na África, que considera existirem mitos na relação entre a organização de megaeventos esportivos e a capacidade de catalisar o desenvolvimento econômico.
FONTE: GLOBO.COM
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