Recém-operado e recuperando-se no tratamento de câncer, o artista vive hoje da ajuda de amigos. Seu nome, ao contrário do amigo João Gilberto, já não causa impacto. Embora nunca tenha sido sucesso de público, ele foi crucial para a música brasileira. O disco de 78 rotações com Alf cantando sua canção “Rapaz de bem”, lançado pela Copacabana em 1955, foi considerado por Antonio Ramalho Neto, em Historinha do desafinado (Editora Vecchi, 1965), como o primeiro da Bossa Nova.
Porém, a história oficial registra o lançamento desse estilo musical apenas em 1958, com outro disco: Chega de Saudade, composição de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, na voz e no violão de João Gilberto. Justo naquela época, Johnny Alf tinha saído do Rio de Janeiro para trabalhar em São Paulo. O descompasso pode ter desafinado sua promissora carreira.
“Não creio que houve um desencontro”, defende-se o artista, como se perdoasse, com uma dose de parcimônia, a curiosidade dos jovens que o cercam no auditório do hospital. “Eu achava o pessoal do Rio meio confuso e quando caí em São Paulo vi organização. Fiquei por aqui mesmo”, diz Alf, com simplicidade. Porém, não consegue esconder que o assunto Bossa Nova o incomoda: “Não me juntei com eles. O fato é que me chamavam, eu não ia lá. Nunca fui muito de grupo”.
Isso é verdade: em maio de 1960, para o primeiro show “oficial” da Bossa Nova, A noite do amor, do sorriso e da flor, na Faculdade de Arquitetura da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, Ronaldo Bôscoli fez questão de ir buscar Johnny Alf em São Paulo. E disse para toda a garotada da platéia que o músico fazia Bossa Nova “há dez anos”. Mas, diante da “novidade” João Gilberto, Alf não representava – e nem representaria – uma grande sensação.
“Johnny é tudo”
Modesto, Johnny Alf se esquiva: “Cada um já tinha a sua sonoridade dentro de si, como eu. Ali, nós apenas nos juntamos”. Mas o jornalista João Carlos Rodrigues, em artigo para o portal Cronópios, o recoloca em seu devido posto. “No início dos 70, tive o privilégio de bater longos papos com João Gilberto em Nova Iorque, em seu quarto no Hotel Bolívar. Questionado sobre Alf, João parou, refletiu um pouco e concluiu: ‘Johnny é tudo’”.
“O João Gilberto eu conheci na rua. Ele cantava num conjunto que eu conhecia e nos apresentaram. Fomos muito próximos, mas não mantemos mais contato”, resume, sem qualquer traço de ressentimento. Johnny Alf parece não se importar com os caminhos tão díspares que sua carreira e a do colega tomaram.
Tem consciência de que dificilmente João Gilberto terminará seus dias numa situação parecida com a dele. Mas não está interessado. “Tenho um público muito grande. É interessante isso: você se afasta, mas o pessoal não esquece”, comenta. Tal percepção vem do fato de que, há bem pouco tempo, o mercado ainda o assediava. Em 2002, gravou para o selo japonês Bossanovologia o CD Johnny Alf sings and plays with his quintet, com músicas inéditas. Foi seu último trabalho em estúdio.
“Gravei isso aí meio mal-humorado, queriam que fosse feito em 48 horas, para sair logo. Tanto que eu não gosto de ouvir esse disco. Tenho ele lá em casa mas nunca pus para ouvir”, observa o músico. “Foi gravado aqui e lançado no Japão, nem sei se fez sucesso”, emenda, lacônico. “Só voltaria a gravar se fosse do jeito que eu gravava antes.”
Milton Borrelli, médico e diretor técnico do Hospital Mário Covas, é músico e foi o responsável pela criação do coral da instituição. Depois de tratar Johnny Alf, de quem é admirador, convidou o paciente para colaborar com o coral. Para Borrelli, o que mais impressiona em Alf é a sonoridade inovadora. “No início, ele chegou a ser muito criticado por não fazer o que era habitual. Ele cercou a melodia com novos acordes.”
Esse novo som foi produto de uma mistura sofisticada entre popular e erudito. Carioca, filho de um cabo do Exército que morreu na luta contra os paulistas em 1932, Alf foi criado na casa de uma família onde sua mãe era doméstica, na Tijuca. A patroa gostava de música e, vendo o talento do menino, bancou seus estudos de piano clássico, dos dez aos 14 anos. Mais tarde, o matriculou no Instituto Brasil–Estados Unidos (Ibeu), onde ele teve contato com o jazz e ganhou o apelido de Johnny Alf.
Misturando a técnica clássica com os improvisos do jazz e o samba-canção que ouvia no rádio, o jovem músico pôde criar algo de realmente novo no início dos anos 1950. Depois de passar pelo fã-clube Sinatra–Farney (considerado um dos embriões da Bossa Nova), estreou profissionalmente em 1952, na Cantina do César, onde tocava e cantava para pessoas como Dolores Duran, Dick Farney e Nora Ney.
“Quando comecei a fazer esse tipo de música e o pessoal começou a conhecer, apareceram os fãs”, lembra. Mas foi na Boate Plaza, pouco depois, que o músico passou a ser venerado. Segundo Ruy Castro em seu livro Chega de saudade – A história e as histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras), ali um novo movimento musical se cristalizou.
“Com tantos talentos jovens reunidos, quase todas as ousadias rítmicas e harmônicas que produziriam a Bossa Nova estiveram em laboratório naquelas madrugadas”, diz Castro. Seja como for, mesmo que João Gilberto fosse, naquele tempo, um simples amigo e fã, foi ele, e não Johnny Alf, quem encontrou a estrada de tijolos dourados – que segue trilhando até hoje.
Quando Alf ensaia “Eu e a brisa” com o coral do hospital, seus versos ganham, como nunca, um tom de apelo e resignação: “Ah, se a juventude que esta brisa canta / Ficasse aqui comigo mais um pouco / Eu poderia esquecer a dor / De ser tão só / Pra ser um sonho”.
FONTE:Matéria publicada originalmente na edição 68 da Fórum.
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