RUANDA
Regime de Paul Kagame é acusado
de oprimir duramente oposicionistas.
Argumento do governo é preservar a 'reconciliação e a unidade' do país.
Alguns meses atrás, Gasigwa Gakunzi estava passando tempo numa casa em
ruínas, onde crianças pobres pagam para assistir à televisão, quando a polícia
ruandesa o prendeu por vadiagem. Quando menos percebeu, ele foi arrancado de
sua família e enviado a essa remota ilha no meio do Lago Kivu.
Gasigwa, de 14 anos, passa seus dias aprendendo canções patrióticas e
como marchar como um soldado. À noite, ele dorme num enorme galpão de metal com
centenas de homens e meninos amontoados, um colchão ao lado do outro.
“Por favor, ligue para meu pai”, sussurrou ele. “Ele não faz ideia de
onde estou”.
Quase 900 pedintes, sem-teto e pequenos ladrões, incluindo dúzias de
crianças, foram recentemente retirados das ruas impecavelmente varridas do
país, e enviados – sem julgamento ou citação em tribunal – a esse desconhecido
posto. Eles passarão três anos aqui sendo “reabilitados”, aprendendo
habilidades como preparação de tijolos, corte de cabelo e manutenção de
motocicletas.
Trata-se de um dos projetos de auto-aprimoramento mais novos do país, e
parece ser um símbolo adequado do que muitos analistas políticos e grupos de
Direitos Humanos dizem que Ruanda se tornou: ordenada, mas repressiva.
Sob o comando do presidente Paul Kagame, este país, que explodiu em
chacinas étnicas há 16 anos, é um dos países mais seguros, limpos e menos
corruptos do continente. A capital, Kigali, não é rodeada por favelas em
crescimento, e sequestros relâmpago – um problema mortal em muitas cidades
africanas – são praticamente inexistentes por aqui. As estradas são
eficientemente pavimentadas; existe seguro-saúde nacional; bairros organizam
faxinas mensais; a rede de computadores está entre as melhores da região; e as
fontes públicas estão cheias de água, e não mato. Tudo isso foi conseguido em
um dos países mais pobres do mundo.
Porém, enquanto o país segue sendo glorificado como um queridinho do
mundo da ajuda internacional e algo como uma utopia da África Central, ele é
cada vez mais intolerante com divergências políticas, algumas vezes até mesmo
com diálogos, e ferve com tensões engarrafadas. Ataques recentes com granadas
em Kigali, e um choque no exército, mostraram que até mesmo um dos marcos
fundamentais do novo estado ruandês – a segurança pessoal – pode estar em
perigo.
“A estratégia de Kagame por estabilidade é uma aposta de longo prazo
bastante perigosa”, disse Kenneth Roth, diretor executivo do Human Rights
Watch. “Ao proibir uma oposição política, uma imprensa independente ou uma
sociedade civil crítica – em resumo, ao não permitir a formação de instituições
democráticas –, Kagame não está deixando muito com que as pessoas se
identificarem além de seu grupo étnico”.
Com menos de quatro meses antes das eleições nacionais, poucos dos
partidos de oposição puderam se registrar. Alguns defensores da oposição foram
atacados dentro de escritórios do governo; outros foram presos. Diversas
autoridades importantes do governo – que recentemente entraram em conflito com
Kagame – e fugiram a outras nações africanas, dizendo temer por suas vidas. O
serviço local da rádio BBC, de idioma local, foi fechado por um tempo, pois o
governo ruandês não gostou da forma pela qual eles falavam sobre o genocídio de
1994.
Aquele período negro, quando esquadrões de morte da maioria hutu
massacraram centenas de milhares de pessoas na minoria tutsi, assim como hutus
moderados, continua como o assunto mais delicado de todos. Nos últimos três
anos, autoridades ruandesas processaram mais de duas mil pessoas, incluindo
rivais políticos, professores e estudantes, por sustentar “ideologia de
genocídio” ou “divisionismo”.
Kagame e seu disciplinado exército rapidamente restauraram a ordem após
o genocídio, e essa estabilidade tem sido a fundação do impressionante retorno
de Ruanda. Segundo a ministra do Exterior, Louise Mushikiwabo, depois de tudo
que Ruanda atravessou, o governo precisa se manter alerta em relação a divisões
étnicas.
“Ruanda não permitirá que nenhum político, partido ou indivíduo,
atrapalhe a reconciliação e a unidade em Ruanda”, disse ela numa entrevista.
Instigadores de violência foram processados por divisionismo, mas o
mesmo ocorreu com pessoas tentando debater o passado do país ou seus
direcionamentos atuais. Críticos sustentam que o governo emprega leis
orwellianas, que são intencionalmente vagas para reprimir quaisquer insinuações
de oposição.
Mesmo programas como o da Ilha Iwawa, que segundo o governo dará uma
segunda chance às pessoas das ruas, não são exatamente o que parecem.
Enquanto um barco cheio de autoridades chegava recentemente à praia, um
comissário de polícia gesticulou aos pássaros, árvores e aos jovens com cabeças
raspadas buscando água, e disse: “Bem-vindos ao nosso Havaí”.
Mas, no continente, o povo descreve o lugar como uma Alcatraz.
“Nós a chamamos de ilha sem volta”, disse Esperance Uwizeyimana,
moradora de rua e mãe de quatro filhos.
Nenhum dos programas de treinamento vocacional havia começado até meados
de março. Protais Mitali, o ministro da Juventude, insistia que não havia
crianças ali, apenas adultos. Mesmo assim, espremidos com os adultos estavam
muitos adolescentes como Gasigwa, e funcionários confirmaram que várias dúzias
de meninos estavam encarcerados lá.
“Este não é um bom local para crianças”, disse um funcionário aos
sussurros, porque o ministro estava por perto. “Eles podem sofrer abusos”.
Autoridades ruandesas não aceitam críticas muito bem. Kagame revoltou-se
com críticos estrangeiros neste mês, dizendo, “Quem deveria dar aulas às 11
milhões de pessoas de Ruanda a respeito do que é bom para elas?”
Ele chamou os líderes da oposição de “hooligans”, e disse que os
ruandeses estavam “livres, felizes e orgulhosos de si mesmos como nunca antes
em suas vidas”.
“Diversas figuras importantes da oposição, como Victoire Ingabire, dizem
ser impossível desafiar o governo, argumentando que ele é controlado por uma
quadrilha de Tutsis que eram refugiados em Uganda antes do genocídio, e hoje
dominam a economia injustamente.
Ingabire, uma hutu, era uma contadora morando na Holanda até retornar,
em janeiro, para se candidatar a presidente. Hoje, ela vive num novo
desenvolvimento de moradia chamado Vision 2020 Estate; sua casa de tijolos de
dois andares, robusta, é indistinguível das dúzias de outras, exceto pelos
guardas na frente.
“Não há espaço para falar sobre o que aconteceu em nosso país”, disse
Ingabire, que foi acusada de ideologia de genocídio, de ser uma “divisionista”
e de colaborar com rebeldes.
Não são apenas os políticos hutu que se sentem perseguidos. Charles
Kabanda era um líder da Frente Patriótica Ruandesa, o partido tutsi dominante,
mas se desligou deles no final da década de 1990, segundo ele, porque “eles
eram brutais”.
Ele trabalhou recentemente com o Partido Verde, mas conta ter sido
repetidamente proibido de concorrer às eleições. Autoridades do governo
disseram que o Partido Verde não conseguiu cumprir requisitos como obter 200
assinaturas válidas em todo o país. Kabanda simplesmente balançou a cabeça.
“‘Inimigo, inimigo, inimigo’ – é assim que eles chamam qualquer um que
pensa de forma diferente”, disse ele. “O histórico deste governo é terrível.
São somente vocês, da comunidade internacional, que o estão banhando com
flores”.
FONTE: G1
REFERÊNCIAS
RUANDA
Regime de Paul Kagame é acusado
de oprimir duramente oposicionistas.
Argumento do governo é preservar a 'reconciliação e a unidade' do país.
Alguns meses atrás, Gasigwa Gakunzi estava passando tempo numa casa em
ruínas, onde crianças pobres pagam para assistir à televisão, quando a polícia
ruandesa o prendeu por vadiagem. Quando menos percebeu, ele foi arrancado de
sua família e enviado a essa remota ilha no meio do Lago Kivu.
Gasigwa, de 14 anos, passa seus dias aprendendo canções patrióticas e
como marchar como um soldado. À noite, ele dorme num enorme galpão de metal com
centenas de homens e meninos amontoados, um colchão ao lado do outro.
“Por favor, ligue para meu pai”, sussurrou ele. “Ele não faz ideia de
onde estou”.
Quase 900 pedintes, sem-teto e pequenos ladrões, incluindo dúzias de
crianças, foram recentemente retirados das ruas impecavelmente varridas do
país, e enviados – sem julgamento ou citação em tribunal – a esse desconhecido
posto. Eles passarão três anos aqui sendo “reabilitados”, aprendendo
habilidades como preparação de tijolos, corte de cabelo e manutenção de
motocicletas.
Trata-se de um dos projetos de auto-aprimoramento mais novos do país, e
parece ser um símbolo adequado do que muitos analistas políticos e grupos de
Direitos Humanos dizem que Ruanda se tornou: ordenada, mas repressiva.
Sob o comando do presidente Paul Kagame, este país, que explodiu em
chacinas étnicas há 16 anos, é um dos países mais seguros, limpos e menos
corruptos do continente. A capital, Kigali, não é rodeada por favelas em
crescimento, e sequestros relâmpago – um problema mortal em muitas cidades
africanas – são praticamente inexistentes por aqui. As estradas são
eficientemente pavimentadas; existe seguro-saúde nacional; bairros organizam
faxinas mensais; a rede de computadores está entre as melhores da região; e as
fontes públicas estão cheias de água, e não mato. Tudo isso foi conseguido em
um dos países mais pobres do mundo.
Porém, enquanto o país segue sendo glorificado como um queridinho do
mundo da ajuda internacional e algo como uma utopia da África Central, ele é
cada vez mais intolerante com divergências políticas, algumas vezes até mesmo
com diálogos, e ferve com tensões engarrafadas. Ataques recentes com granadas
em Kigali, e um choque no exército, mostraram que até mesmo um dos marcos
fundamentais do novo estado ruandês – a segurança pessoal – pode estar em
perigo.
“A estratégia de Kagame por estabilidade é uma aposta de longo prazo
bastante perigosa”, disse Kenneth Roth, diretor executivo do Human Rights
Watch. “Ao proibir uma oposição política, uma imprensa independente ou uma
sociedade civil crítica – em resumo, ao não permitir a formação de instituições
democráticas –, Kagame não está deixando muito com que as pessoas se
identificarem além de seu grupo étnico”.
Com menos de quatro meses antes das eleições nacionais, poucos dos
partidos de oposição puderam se registrar. Alguns defensores da oposição foram
atacados dentro de escritórios do governo; outros foram presos. Diversas
autoridades importantes do governo – que recentemente entraram em conflito com
Kagame – e fugiram a outras nações africanas, dizendo temer por suas vidas. O
serviço local da rádio BBC, de idioma local, foi fechado por um tempo, pois o
governo ruandês não gostou da forma pela qual eles falavam sobre o genocídio de
1994.
Aquele período negro, quando esquadrões de morte da maioria hutu
massacraram centenas de milhares de pessoas na minoria tutsi, assim como hutus
moderados, continua como o assunto mais delicado de todos. Nos últimos três
anos, autoridades ruandesas processaram mais de duas mil pessoas, incluindo
rivais políticos, professores e estudantes, por sustentar “ideologia de
genocídio” ou “divisionismo”.
Kagame e seu disciplinado exército rapidamente restauraram a ordem após
o genocídio, e essa estabilidade tem sido a fundação do impressionante retorno
de Ruanda. Segundo a ministra do Exterior, Louise Mushikiwabo, depois de tudo
que Ruanda atravessou, o governo precisa se manter alerta em relação a divisões
étnicas.
“Ruanda não permitirá que nenhum político, partido ou indivíduo,
atrapalhe a reconciliação e a unidade em Ruanda”, disse ela numa entrevista.
Instigadores de violência foram processados por divisionismo, mas o
mesmo ocorreu com pessoas tentando debater o passado do país ou seus
direcionamentos atuais. Críticos sustentam que o governo emprega leis
orwellianas, que são intencionalmente vagas para reprimir quaisquer insinuações
de oposição.
Mesmo programas como o da Ilha Iwawa, que segundo o governo dará uma
segunda chance às pessoas das ruas, não são exatamente o que parecem.
Enquanto um barco cheio de autoridades chegava recentemente à praia, um
comissário de polícia gesticulou aos pássaros, árvores e aos jovens com cabeças
raspadas buscando água, e disse: “Bem-vindos ao nosso Havaí”.
Mas, no continente, o povo descreve o lugar como uma Alcatraz.
“Nós a chamamos de ilha sem volta”, disse Esperance Uwizeyimana,
moradora de rua e mãe de quatro filhos.
Nenhum dos programas de treinamento vocacional havia começado até meados
de março. Protais Mitali, o ministro da Juventude, insistia que não havia
crianças ali, apenas adultos. Mesmo assim, espremidos com os adultos estavam
muitos adolescentes como Gasigwa, e funcionários confirmaram que várias dúzias
de meninos estavam encarcerados lá.
“Este não é um bom local para crianças”, disse um funcionário aos
sussurros, porque o ministro estava por perto. “Eles podem sofrer abusos”.
Autoridades ruandesas não aceitam críticas muito bem. Kagame revoltou-se
com críticos estrangeiros neste mês, dizendo, “Quem deveria dar aulas às 11
milhões de pessoas de Ruanda a respeito do que é bom para elas?”
Ele chamou os líderes da oposição de “hooligans”, e disse que os
ruandeses estavam “livres, felizes e orgulhosos de si mesmos como nunca antes
em suas vidas”.
“Diversas figuras importantes da oposição, como Victoire Ingabire, dizem
ser impossível desafiar o governo, argumentando que ele é controlado por uma
quadrilha de Tutsis que eram refugiados em Uganda antes do genocídio, e hoje
dominam a economia injustamente.
Ingabire, uma hutu, era uma contadora morando na Holanda até retornar,
em janeiro, para se candidatar a presidente. Hoje, ela vive num novo
desenvolvimento de moradia chamado Vision 2020 Estate; sua casa de tijolos de
dois andares, robusta, é indistinguível das dúzias de outras, exceto pelos
guardas na frente.
“Não há espaço para falar sobre o que aconteceu em nosso país”, disse
Ingabire, que foi acusada de ideologia de genocídio, de ser uma “divisionista”
e de colaborar com rebeldes.
Não são apenas os políticos hutu que se sentem perseguidos. Charles
Kabanda era um líder da Frente Patriótica Ruandesa, o partido tutsi dominante,
mas se desligou deles no final da década de 1990, segundo ele, porque “eles
eram brutais”.
Ele trabalhou recentemente com o Partido Verde, mas conta ter sido
repetidamente proibido de concorrer às eleições. Autoridades do governo
disseram que o Partido Verde não conseguiu cumprir requisitos como obter 200
assinaturas válidas em todo o país. Kabanda simplesmente balançou a cabeça.
“‘Inimigo, inimigo, inimigo’ – é assim que eles chamam qualquer um que
pensa de forma diferente”, disse ele. “O histórico deste governo é terrível.
São somente vocês, da comunidade internacional, que o estão banhando com
flores”.
FONTE: G1
REFERÊNCIAS
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