A reserva de vagas para estudantes negros foi adotada em universidades públicas há ao menos dez anos, mas somente agora o debate sobre a adoção do sistema de cotas chegará ao Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Ricardo Lewandowski convocou uma audiência pública sobre o tema entre os dias 3 e 5 de março. Trata-se do passo inicial do julgamento de uma ação movida pelo Partido Democratas (ex-PFL) contra a Universidade de Brasília (UnB), que reserva 20% das vagas abertas em seu vestibular para estudantes negros, independentemente da classe social a qual pertençam.
O resultado do julgamento, apostam especialistas, terá impacto sobre o sistema de seleção de todas as universidades públicas do País. Também pode acelerar ou contribuir para a derrocada das iniciativas parlamentares de criar um amplo sistema de cotas sociais e raciais nas universidades federais, uma discussão que patina no Congresso desde que as primeiras propostas do gênero foram adotadas por iniciativa das próprias instituições de ensino.
Para os defensores da medida, a esperança é que os ministros do STF tenham o mesmo entendimento que a maioria dos magistrados da primeira instância e dos tribunais de Justiça, que consolidaram nos últimos anos uma jurisprudência favorável às cotas em vários estados brasileiros. É o que revela um estudo recém-concluído pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). O estudo mostra que, em 2003, quando as universidades estaduais fluminenses adotaram o sistema de cotas, ao menos 400 mandados de segurança foram impetrados por alunos que perderam a vaga no ensino superior para alunos cotistas. Destes, 161 foram concedidos liminarmente pela Justiça. Mas, um a um, acabaram por terra.
Em novembro do ano passado, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manifestou-se pelo mérito da questão: concluiu que as cotas eram constitucionais. “Com o tempo, todas as liminares foram cassadas e os estudantes pararam de contestar na Justiça o resultado do vestibular com base no ingresso dos alunos cotistas”, comenta o advogado Renato Ferreira, pesquisador da Uerj e responsável pelo estudo. “Este fenômeno não se restringe ao Rio. Ao adotar as cotas, a Universidade Federal do Paraná sofreu ao menos 140 ações do gênero. Hoje, os casos são raríssimos. O mesmo identificamos em Alagoas, na Bahia, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul. O Judiciário, tido como um poder conservador, está reconhecendo a legitimidade das políticas afirmativas.”
Até o fim de 2009, ao menos 93 universidades adotavam algum tipo de cota. Entre elas, as que usavam algum tipo de recorte racial chegavam a 67. A advogada Roberta Fragoso Kaufmann, autora da ação do DEM contra o sistema de cotas da UnB, esclarece que o partido não questiona a legitimidade da reserva de vagas a alunos egressos de escolas públicas ou para estudantes de baixa renda. “Não somos contra as cotas sociais. O que contestamos é a inclusão de critérios raciais, o que abre um precedente perigoso de criação de leis no Brasil baseados na diferenciação pela cor da pele.” Pupila de Gilmar Mendes, Roberta Kaufmann foi orientada pelo próprio presidente do STF no mestrado sobre a necessidade de políticas afirmativas no Brasil.
As cotas raciais encontram resistência mesmo entre representantes do Movimento Negro, como o advogado José Roberto Militão, integrante da Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB-SP. “O Estado não deve legislar sobre o conceito de raça, porque, dessa forma, ele reconhece e outorga uma nova identidade jurídica, baseada na cor da pele, que viola a dignidade humana”, afirma. “As cotas legitimam a segregação racial. E, nessa esdrúxula hierarquia racial, os negros são vistos como inferiores, alvos prioritários da assistência. Isso é degradante, acaba com a autoestima dos jovens negros.”
Para Fábio Konder Comparato, professor aposentado da Universidade de São Paulo, o sistema de cotas é um passo necessário para começar a reparar séculos de exploração e marginalização da população negra. “Os pretos e pardos representam 70% da faixa dos 10% mais pobres. Os trabalhadores negros recebem, em média, a metade do salário dos brancos. Além disso, 58% da população branca tem acesso ao Ensino Médio, ao passo que a participação dos negros é de apenas 37%”, comenta. “Isso significa que estamos descumprindo a Constituição, porque ela prevê a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades. E o Estado tem feito muito pouco para reduzir o abismo social que separa os negros dos brancos.”
Segundo Comparato, é absurda a tese de que o sistema de cotas vai provocar ódio racial. “Justiça é tratar desiguais na medida da desigualdade. É por isso que a Constituição prevê, por exemplo, proteção às mulheres no mercado de trabalho. E ninguém diz que é uma Constituição sexista ou que promove a guerra dos sexos”, afirma. “Ainda se propagandeia essa falácia da democracia racial no Brasil, simplesmente porque o preconceito, aqui, é dissimulado, enrustido. Mas os dados que citei são de fontes oficiais. Isso é real.”
Na avaliação do frei franciscano David Santos, fundador e presidente da ONG Educafro, que oferece cursos preparatórios para negros ingressarem na universidade, as cotas são medidas emergenciais, que devem durar de 10 a 15 anos. “Seu objetivo é o de despertar a sociedade para que se abra e execute a igualdade material, saindo da igualdade formal, que é mentirosa e sempre beneficiou um único segmento da nação”, afirma. “É uma reparação com o nosso passado escravocrata e com a marginalização dos negros até hoje.”
O professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da UnB, concorda com a avaliação. “Foi por entender que o racismo é crônico na sociedade brasileira e em todas as classes sociais que a UnB optou por oferecer cotas raciais. E, para comprovar o descompasso, basta observar alguns indicadores. Segundo o censo universitário de 2000, apenas 12% dos nossos alunos eram pretos ou pardos, apesar de os negros representarem mais da metade da população brasileira.” Mas por que cotas raciais, e não sociais? “Nesse mesmo ano identificamos 400 alunos que recebiam auxílio-moradia da universidade, justamente por serem mais pobres. Sabe quantos eram negros? Apenas dez”, explica Carvalho.
FONTE: CARTA CAPITAL
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