Entre os iorubás, o poder feminino é sintetizado por um termo coletivo, Awon Iyá wa, “nossas mães”, que são particularmente homenageadas na ocasião do festival Gęlędę realizado entre março e maio, antes do começo das chuvas. O objetivo do Gęlędę é precisamente aplacar as terríveis mães ancestrais para que a fecundidade dos campos se possa processar. As cantigas evocam de maneira não equívoca as características que fazem das Grandes Mães, designadas ainda mais diretamente pela forma singular Iya mi, “minha mãe”, as donas de tão poderoso axé:
"Mãe destruidora, hoje te glorifico:
O velho pássaro não se aqueceu no fogo.
O pássaro doente não se aqueceu ao sol.
Algo secreto foi escondido na casa da Mãe...
Honras a minha Mãe!
Mãe cuja vagina atemoriza a todos.
Mães cujos pêlos púbicos se enroscam em nós.
Mãe que arma uma cilada, arma uma cilada.
Mãe que tem montes de comida em casa"
(Drewal, in Pemberton, 1982, p. 56)
Na simbologia iorubá, o pássaro representa o poder procriador da mãe. As penas do pássaro, como as escamas do peixe, aludem ao número infinito de descendentes, que estão, por assim dizer, implicitamente presentes no corpo materno. Nada pode aquecer o velho pássaro porque ele mesmo é fonte de calor, de vida. Esse poder é essencialmente misterioso, secreto, escondido no âmago do corpo da mãe, casa e morada. O medo de ficar preso para sempre dentro do corpo materno é claramente assumido, pois que cilada é essa, senão a própria vagina aterradora?
Falar claramente desse tema constitui, conforme Carneiro da Cunha, transgressão própria dos cultos que promovem a inversão dos valores sociais para permitir a regeneração periódica do mundo, como é o caso do Gęlędę : “A finalidade principal é aplacar, mimar, agradar as Iami e, para tanto, a comunidade masculina abdica de suas prerrogativas de homens (dançam vestidos de mulher) para agradarem totalmente às mães ancestrais (...) Há uma grande licença verbal. Adultos e crianças falam livremente dos enormes pêlos, da imensa vulva de Iami” (Carneiro da Cunha, 1984, p. 6). Vale dizer que o poder da mãe é tão terrível, que só pode ser evocado pela sátira ou pela mascarada. Afirmar sua realidade implica a desvalorização do poder masculino.
De acordo com Waldeloir Rego (1980) há uma história do odu Òşa Méji que conta como Iya Mapo, a “Mãe da Vagina”, recorreu aos bons efeitos de Iyami Oxorongá – que constitui um dos aspectos mais aterradores da Grande Mãe -, para colocar o sexo “no devido lugar na mulher”. Várias partes do corpo tinham sido experimentadas como localização da vagina, mas todas se revelaram inconvenientes. Foi Exu que, mediante ebó “feito com duas bananas e um pote” acertou o lugar definitivo, “bem como o do pênis nos homens, do qual Exu é o dono”. Como se vê, para o sexo masculino assumir sua correta posição, é preciso que o poder masculino e o poder feminino trabalhem de comum acordo.
O que assusta, porém, no caso da Grande Mãe, é sua completude. “Ela é a matriz primeira da qual surge toda criação” (Carneiro da Cunha, 1984, p. 6) ou, para citar outra cantiga de Gęlędę:
“Mãe toda poderosa, mãe do pássaro da noite (...)
Grande mãe com quem não ousamos coabitar
Grande mãe cujo corpo não ousamos olhar
Mãe de belezas secretas
Mãe que esvazia a taça
Que fala grosso como homem,
Grande, muito grande mãe no topo da árvore iroko,
Mãe que sobe alto e olha para a terra
Mãe que mata o marido mas dele tem pena”
(Beier in Pemberton, 1982, p. 192).
Origem de todos nós, a mãe é inteiramente sacralizada. O seu poder, como sua beleza, reside no âmago do segredo da criação. Ela basta a si própria, fala grosso como homem, olha-nos do alto da árvore iroko, assumindo portanto características bem fálicas; o seu marido desempenha rápido papel fecundante, qual zangão, e depois, ela o mata. “Ela é o poder em si, tem tudo dentro de seu ser. Ela pode tudo. Ela é um ser auto-suficiente, ela não precisa de ninguém, é um ser redondo, primordial, esférico, contendo todas as oposições dentro de si. Awon Iyá são andróginas, elas têm em si o Bem e o Mal dentro delas, elas têm a feitiçaria e a anti-feitiçaria, elas têm absolutamente tudo, elas são perfeitas” (Carneiro da Cunha, 1984, p. 8).
É praticamente impossível lidar-se diretamente com poder tão absoluto, a não ser nos momentos privilegiados da promoção ritual do caos, como o festival Gęlędę. Em conseqüência, ocorre o poder da Grande Mãe Ancestral nas diversas figuras das divindades femininas. Para que haja trocas, para que a sociedade se organize, é preciso que poder feminino e masculino se oponham e se completem. Vários mitos relatam como deuses masculinos, por astúcia e ardil, conseguem despojar a Grande Mãe de parte de seu poder. Nos terreiros brasileiros, é bem conhecido o caso de Oxalá com Nanã. Seduzindo-a, roubou-lhe a exclusividade do poder sobre os espíritos dos mortos. Para tanto, vestiu-se de mulher, fingiu que era Nanã e, por assim dizer, domesticou os temíveis Egúngún que, até então, faziam tudo o que ela mandava (Augras, 1983, pp. 136-138). Para desapossar a Grande Mãe do seu poder, é preciso pagar o preço. Oxalá usa saia até hoje.
Nanã, no entanto, ainda permanece como imagem amedrontadora da mãe que, tendo o poder da vida, possui também o poder da morte. Outras Aiabás conservam igualmente características ameaçadoras, ainda que hoje bastante veladas. Entre nós, Obá continua sendo homenageada como patrona das sociedades secretas das mulheres. Iansã, heroína como Nanã de um mito em que o poder é retirado das mulheres pelos homens, defendidos nesse caso por Ogun, que também recorre à mascarada para chegar a seus fins, continua no entanto sendo a “Rainha e Fundadora da Sociedade Secreta dos Egúngún na terra” (Santos, J. E., 1976, p. 173). Além disso, sua fama de feiticeira é bem estabelecida. “Iansã é cheia de magia”, isto é ponto pacífico nos terreiros da Bahia e do Rio de Janeiro.
Oxum, cujo poder se relaciona claramente com a fecundidade, é personagem de um mito conhecido, em que um simbolismo transparente mostra que até mesmo Oxalá supera o tabu da menstruação para prosternar-se aos pés da representante do poder feminino. Transformando em penas vermelhas de papagaio-da-costa o sangue que gotejava do corpo de uma sacerdotisa, Oxum ouve Oxalá declarar: “Nunca hei de me separar desta pena vermelha que é ekodidé e que será o único sinal desta cor que carregarei sobre o meu corpo” (Santos, D. M ., 1966, s/p). Do mesmo modo, Iemanjá, mãe da possibilidade do ser, Dama das Origens, é exaltada em seu papel fecundo, sem que seu poder seja percebido como ameaçador. Parece que tais deusas representam exclusivamente o papel da mãe boa.
Nessa perspectiva, infere-se que a divisão do poder de proteção com os deuses masculinos tem como conseqüência o despojamento dos aspectos da Grande Mãe Ancestral. A partir do momento em que os papéis se vão diferenciando, divindades masculinas e femininas individualizam-se, os poderes são distribuídos, cada entidade responde por um aspecto específico. Há, contudo, como que um poder residual que permanece, indômito, impermeável às investidas dos valores patriarcais, e no qual se condensam todas as potencialidades negativas. É o poder das Àję , temíveis feiticeiras, tão terríveis que não se lhes pronuncia o nome. São aludidas como Eleiye, Dona do Pássaro, pois também formam um coletivo que, na verdade, expressa a síntese dos poderes da mãe terrível, reduzida agora aos aspectos aterradores, e que se chama Iyami Oxorongá.”
FONTE: AUGRAS, Monique. “De Yiá Mi a Pomba Gira: transformações e símbolos da libido”. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Meu sinal está no teu corpo. Escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo, Edicon, Editora da Universidade de São Paulo, 1989
FONTE:GELEDÉS
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